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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Mien Kanpf parte2

O que meu pai, cinqüenta anos antes, havia conseguido, esperava eu também obter da sorte. Eu queria tornar-me "alguém", mas, em caso algum, empregado público.

CAPÍTULO II - ANOS DE APRENDIZADO E DE SOFRIMENTO EM VIENA

Quando minha mãe morreu, meu destino sob certo aspecto já se tinha decidido.
Nos seus últimos meses de sofrimento eu tinha ido a Viena para fazer exame de admissão à Academia. Armado de um grosso volume de desenhos, dirigi-me à capital austríaca convencido de poder facilmente ser aprovado no exame. Na escola profissional eu já era sem nenhuma dúvida, o primeiro aluno de desenho da minha classe. Daquele tempo para cá a minha aptidão se tinha desenvolvido extraordinariamente. de maneira que, contente comigo mesmo, esperava, orgulhoso e feliz, obter o melhor resultado da prova a que me ia submeter.
Só uma coisa me afligia: meu talento para a pintura parecia sobrepujado pelo talento para o desenho, sobretudo no domínio da arquitetura. Ao mesmo tempo, crescia cada vez mais meu interesses pela arte das construções. Mais vivo ainda se tornou esse interesse quando, aos dezesseis anos incompletos, fiz minha primeira visita a Viena, visita que durou duas semanas. Ali fui para estudar a galeria de pintura do "Hofmuseum", mas quase só me interessava o próprio edifício do museu. Passava o dia inteiro, desde a manhã até tarde da noite, percorrendo com a vista todas as raridades nele contidas, mas, na realidade, as construções é que mais me prendiam a atenção. Durante horas seguidas, ficava diante da Ópera ou admirando o edifício de Parlamento. A "Ringstrasse" atuava sobre mim como um conto de mil-e-uma noites.
Achava-me agora, pela segunda vez, na grande cidade, e esperava com ardente impaciência, e, ao mesmo tempo, com orgulhosa confiança, o resultado do meu exame de admissão. Estava tão convencido do êxito do meu exame que a reprovação que me anunciaram feriu-me como um raio que caísse de um céu sereno. Era, no entanto, uma pura verdade. Quando me apresentei ao diretor para pedir-lhe os motivos da minha não aceitação à escola pública de pintura, assegurou-me ele que, pelos desenhos por mim trazidos, evidenciava-se a minha inaptidão para a pintura e que a minha vocação era visivelmente para a arquitetura. No meu caso, acrescentou ele, o problema não era de escola de pintura mas de escola de arquitetura.
Não se pode absolutamente compreender, em face disso, que eu até hoje não tenha freqüentado nenhuma escola de arquitetura nem mesmo tomado sequer uma lição.
Abatido, deixei o magnífico edifício da "Shillerplatz", sentindo-me. pela primeira vez na vida, em luta comigo mesmo. O que o diretor me havia dito a respeito da minha capacidade agiu sobre mim como um raio deslumbrante a revelar uma luta íntima, que, de há muito, eu vinha sofrendo, sem até então poder dar-me conta do porquê e do como.
Em pouco tempo, convenci-me de que um dia eu deveria ser arquiteto. O caminho era, porém, dificílimo, pois o que eu, por teimosia, tinha evitado aprender na escola profissional, ia agora fazer-me falta. A freqüência da Escola de Arquitetura da Academia dependia da freqüência da escola técnica de construções e a entrada para essa exigia um exame de madureza em uma escola média. Tudo isso me faltava completamente. Dentro das possibilidades humanas, já não me era mais lícito esperar a realização dos meus sonhos de artista.
Quando, depois da morte de minha mãe, pela terceira vez, e desta vez para demorar-me muitos anos, fui a Viena, a tranqüilidade e uma firme resolução tinham voltado a mim, com o tempo decorrido nesse intervalo.
A antiga teimosia também tinha voltado e com ela a persistência na realização do meu objetivo. Eu queria ser arquiteto. Obstáculos existem não para que capitulemos diante deles mas para os vencermos. E eu estava disposto a arrostar com todas essas dificuldades, sempre tendo, diante dos olhos, a imagem de meu pai, que, de simples aprendiz de sapateiro de aldeia, tinha subido até ao funcionalismo público. O chão sobre que eu pisava era mais firme, as possibilidades na luta, maiores. O que, outrora, me parecia aspereza da sorte, aprecio hoje como sabedoria da Providência. Enquanto a necessidade me oprimia e ameaçava aniquilar-me, crescia a vontade de lutar. E, finalmente, foi vitoriosa a vontade. Agradeço àqueles tempos o ter-me tornado forte e poder sê-lo ainda. E ainda mais agradeço o ter-me livrado do tédio da vida fácil e ter-me tirado do conforto despreocupado do lar, para dar-me o sofrimento como substituto de minha mãe e lançar-me na luta de um mundo de misérias e de pobreza, que aprendi a conhecer e pelo qual mais tarde deveria lutar.
Nesse tempo, abriram-se-me os olhos para dois perigos que eu mal conhecia pelos nomes e que, de nenhum modo, se me apresentavam nitidamente na sua horrível significação para a existência do povo germânico: marxismo e judaísmo.
Viena, a cidade que para muitos reputada como um complexo de inocentes prazeres, como lugar para homens que se querem divertir, vale para mim, infelizmente, como uma viva lembrança dos mais tristes tempos da minha vida. Ainda hoje, essa capital só desperta em mim pensamentos sombrios. Cinco anos de miséria e de sofrimentos, eis o que significa a minha estadia nessa cidade de prazeres. Cinco anos em que, primeiro como ajudante de operário, depois como aprendiz de pintor, vime forçado a trabalhar pelo pão quotidiano, mesquinho pão que nunca bastava para saciar a minha fome habitual, A fome era então minha companheira fiel que nunca me deixava sozinho e que de tudo igualmente participava. Cada livro que eu comprava aumentava a sua participação na minha vida. Uma visita à Ópera fazia com que ela me fizesse companhia o dia inteiro. Era uma eterna luta com o meu impiedoso companheiro. E, não obstante isso, nesse tempo aprendi mais do que nunca. Além do meu trabalho em construções, das raras visitas à Ópera, - feitas com o sacrifício do estômago - tinha como único prazer a leitura. Li muito e profundamente. No tempo livre, depois do trabalho, subia imediatamente ao meu quarto de estudo. Em poucos anos, lancei os alicerces de conhecimentos de que ainda hoje me utilizo. Mais importante do que tudo isso: naqueles tempos adquiri uma noção do mundo que serviu de fundamento granítico para o meu modo de agir de então. A essa noção precisei acrescentar pouca coisa, mudar nada.
Ao contrário.
Estou firmemente convencido de que, em conjunto, várias idéias criadoras que hoje possuo, já na mocidade apareciam fundadas em princípios. Faço diferença entre a sabedoria da velhice, que vale pela sua maior profundidade e prudência, resultantes da experiência de uma longa vida, e a genialidade da juventude que, em inesgotável proliferação, cria pensamentos e idéias sem poder logo elaborá-las definitivamente, em conseqüência do tumulto em que elas se sucedem. A mocidade fornece o material de construção e os pia-nos de futuro, dos quais a velhice toma os blocos, trabalha-os e levanta a construção, isso quando a chamada sabedoria dos velhos não sufoca a genialidade dos moços.
A vida que eu até ali tinha levado na casa paterna diferenciava-se em pouco ou em nada da vida dos outros. Sem cuidados, podia esperar pelo dia seguinte, e para mim não havia questão social. As relações da minha juventude compunham-se de pequenos burgueses, por conseguinte de um mundo que mantinha muito poucas relações com o verdadeiro operário. Por mais estranho que isso possa parecer à primeira vista, o abismo entre essa camada social, cuja situação econômica nada tem de brilhante, e o trabalhador manual, é freqüentemente mais profundo do que se pensa. A razão dessa quase inimizade jaz no receio que tem um grupo social que, apenas há pouco tempo, elevou-se acima do nível do proletariado, de descer à antiga e pouco prezada posição ou de, pelo menos, ser visto como pertencendo a essa classe. A isso se acrescente, entre muitos, a desagradável lembrança da ignorância dessa baixa classe, a constante brutalidade nas suas relações uns com os outros e compreender-se-á porque a pequena burguesia, em uma posição social ainda inferior, considera todo contato com essas ínfimas camadas sociais como um fardo insuportável.
Isso explica porque é mais freqüente a uma pessoa altamente colocada, do que a um parvenu, nivelar-se, sem afetação, com os mais humildes. O parvenu é o que, por sua própria força de vontade, passa, na luta pela vida, de uma posição social a outra mais elevada. Essa luta, as mais das vezes áspera, mata a compaixão no coração humano e estanca a simpatia pelos sofrimentos dos que ficam atrás.
Sob esse aspecto, a sorte foi comigo compassiva. Enquanto me compelia a voltar para esse mundo de pobreza e de incertezas, que, no decurso de sua vida, meu pai já havia abandonado, punha, ao mesmo tempo, diante dos meus olhos, com todos os seus aspectos repugnantes, a educação estreita dos pequenos burgueses. Só então aprendi a conhecer os homens, aprendi a fazer a diferença entre ocas aparências, exteriorizações brutais e a essência íntima das coisas.
Já no fim do século passado, Viena pertencia ao número das cidades em que era visível o desequilíbrio social.
Brilhante riqueza e degradante pobreza revezavam-se em contrastes violentos. No centro da cidade e nas suas adjacências sentia-se o bater do pulso do Império de cinqüenta e dois milhões, com todo o seu poder mágico de atração, nesse Estado de várias nacionalidades. A Corte no seu deslumbrante esplendor, agia como ímã sobre a riqueza e a inteligência do resto do Estado. A isso deve-se juntar a forte centralização da política da monarquia dos Habsburgos. Nessa concentração, estava a única possibilidade de manter-se em firme união essa salada de povos. A conseqüência disso foi, porém, uma exagerada concentração das autoridades governamentais na capital, na residência da Corte
Além disso, Viena era, não só espiritual e politicamente, mas também economicamente, o centro da antiga monarquia danubiana. Em frente ao exército de oficiais superiores, funcionários públicos, artistas e sábios, estendia-se um exército ainda maior, composto de trabalhadores; em frente da riqueza da aristocracia e do comércio, uma pobreza atroz. Diante dos palácios da Ringstrasse perambulavam milhares de sem-trabalho e, por baixo dessa via triunfal da velha Áustria, amontoavam-se os sem-teto, no lusco-fusco e na imundície dos canais.
Dificilmente em uma cidade alemã se poderia tão bem estudar a questão social como em Viena. Mas ninguém se iluda. esse estudo não pode ser feito de cima para baixo. Quem não se viu nas garras dessa víbora nunca aprenderá a conhecer os seus dentes venenosos. Sem essa etapa, tudo redunda em palavreado superficial ou sentimentalismo hipócrita. Um e outro caso são de conseqüências nocivas: no primeiro, porque não se pode descer ao âmago da questão, no segundo, porque se passa sobre ela.
Não sei o que é mais desolador: a indiferença pela miséria social que se nota diariamente na maioria dos que foram favorecidos pela sorte ou que subiram pelos seus próprios méritos, ou a afabilidade soberba, importuna, sem tato, embora sempre compassiva, de certas senhoras da moda que afetam sentir com o povo. Essa gente peca por falta de instinto mais do que se pode supor. Por isso, com surpresa sua, o resultado de sua atividade social é sempre nulo, freqüentemente provoca repulsa, o que é interpretado como prova da ingratidão do povo.
Dificilmente entra na cabeça dessa gente que uma atividade social não consiste nisso e que, sobretudo, não se deve esperar gratidão, pois, no caso, não se trata de distribuição de favores mas apenas de restabelecimento de direitos.
Por isso, escapei de entender a questão social por essa forma. Quando ela me arrastou aos seus domínios parecia não me convidar para aprender mas sim para pôr-me à prova. Não foi por seu merecimento que a cobaia, ainda sadia, suportou a operação.
Na maior parte dos casos não era muito difícil, naquele tempo, encontrar trabalho, uma vez que eu não era operário técnico, mas devia conquistar o pão de cada dia, como ajudante de operário e muitas vezes como trabalhador de. emergência.
Colocava-me, por isso, no ponto de vista daqueles que sacodem dos pés a poeira da Europa, com o irremovível propósito de, rio Novo Mundo, criar uma nova vida, construir uma nova pátria. Libertados de todas as noções até aqui falhas sobre profissão, ambiente e tradições, pegam-se a todo ganho que se lhes oferece, agarram-se a todo trabalho, lutando sempre, com a convicção de que nenhuma atividade envergonha, pouco importando de que natureza esta possa ser. Assim estava eu também decidido a lançar-me de corpo e alma no mundo para mim novo e abrir-me um caminho, lutando.
Cedo me convenci de que trabalho há sempre, mas perdemo-lo com a mesma facilidade com que o encontramos.
A incerteza do ganho do pão quotidiano, dentro de pouco tempo pareceu-me ser o aspecto mais sombrio da nova vida.
O operário técnico não é lançado tão freqüentemente na rua, como os que não o são, mas ele também não está inteiramente ao abrigo dessa sorte. Entre eles, ao lado da perda do pão por falta de trabalho, podem concorrer o chômage e as suas próprias greves.
Nesses casos, a incerteza do ganho do pão diário tem fortes reações sobre toda a economia.
O camponês que se dirige às grandes cidades atraído pelo trabalho que imagina fácil ou que o é realmente, mas sempre trabalho de pouca duração, ou o que é atraído pelo esplendor da grande cidade, o que sucede na maioria dos casos, esse ainda está habituado a uma certa segurança do pão. Ele costuma só abandonar os antigos postos, quando tem outro pelo menos em perspectiva.
A falta de trabalhadores do campo é grande e, por isso, a probabilidade de falta de trabalho é ali muito pequena.
É pois, um erro acreditar que o jovem trabalhador que se dirige à cidade seja inferior ao que fica trabalhando na aldeia. A experiência mostra que acontece o contrário com todos os elementos de emigração, quando são sadios e ativos. Entre esses emigrantes devem-se contar não só os que vão para a América mas também os jovens que se decidem a abandonar sua aldeia para se dirigirem as grandes capitais desconhecidas. Esses também estão dispostos a aceitar uma sorte incerta. Na maioria, trazem algum dinheiro, e, por isso, não se vêem na contingência de ser arrastados ao desespero logo nos primeiros dias, se, por infelicidade, de começo não encontram trabalho. O pior é, porém, quando perdem, em pouco tempo, o trabalho que haviam encontrado. Encontrar outro, sobretudo no inverno, é difícil, se não impossível. Nas primeiras semanas, a situação é ainda insuportável, pois ele recebe da caixa do sindicato a proteção dada ao seu trabalho e atravessa como pode os dias de desemprego. Quando o seu último vintém é gasto, quando a caixa, em conseqüência da longa duração da falta de trabalho, também suspende o pagamento, vem a grande miséria. Então, faminto, erra para cima e para baixo, empenha ou vende os objetos que lhe restam e cada vez mais sensível se lhe torna a falta de roupas. Desce a uma Convivência que acaba por envenenar-lhe o corpo e a alma. Fica sem casa e, se isso acontece no inverno como é comum, então a miséria aumenta. Finalmente, encontra algum trabalho, mas o jogo se repete. Uma segunda vez atingiu de maneira semelhante à primeira, a terceira vez as coisas se tornaram ainda mais difíceis, e assim, pouco a pouco, ele aprende a suportar com indiferença a eterna insegurança. Por fim, a repetição adquire força de hábito.
E assim o homem, outrora diligente, abandona inteiramente a sua antiga concepção da vida, para, pouco a pouco, transformar-se em um instrumento cego daqueles que dele se utilizam apenas na satisfação dos mais baixos proveitos. Sem nenhuma culpa sua ele ficou tantas vezes sem trabalho, que, mais uma vez, menos uma vez, pouco lhe importa. Assim mesmo quando não se trata da luta pelos direitos econômicos do operariado mas de destruição dos valores políticos, sociais ou culturais, ele será então, quando não entusiasta de greves, pelo menos indiferente a elas.
Essa evolução eu tive oportunidade de acompanhar cuidadosamente em milhares de exemplos. Quanto mais eu observava esses fatos, tanto mais aumentava a minha aversão pela cidade dos milhões que os homens, cheios de cobiça, acumulavam para, depois, tão cruelmente, desperdiçá-los.
Eu também fui fustigado pela vida na grande metrópole e à minha própria custa submeti-me a essa provação, experimentando, uma por uma todas essas dolorosas sensações.
Observei ainda que essa rápida mudança do trabalho para a ociosidade forçada e vice-versa, essa eterna oscilação do emprego para o desemprego, com o tempo, haveria de destruir o sentimento de economia e as razões para um prudente equilíbrio de vida. Lentamente o corpo parece acostumar-se a viver à farta nos bons tempos e a passar fome nos maus. A fome destrói todos os projetos dos operários no sentido de um melhor e mais razoável modus vivendi. Nos bons tempos eles se deixam embalar por uma constante miragem pelo sonho de uma vida melhor, sonho que empolga de tal modo a sua existência que eles esquecem as antigas privações, logo que recebem os seus salários. Dai resulta que o que consegue trabalho, imediatamente, da maneira mais desrazoável, esquece uma prudente distribuição de suas despesas, para viver à larga, apenas nos dias imediatos. Isso conduz ao transtorno da manutenção da casa durante a semana, tornando não mais possível uma razoável distribuição da receita. O dinheiro da semana, de começo, dá para cinco dias em vez de sete, mais tarde para três em vez de quatro, finalmente apenas para um dia e, por fim, logo na primeira noite é inteiramente gasto em prazeres.
Em casa, as mais das vezes, há mulher e crianças. Também elas recebem a influência dessa maneira de viver, principalmente se o chefe de família é bom para os seus. Nesse caso, o ganho da semana é esbanjado com todos em casa nos três primeiros dias. Come-se e bebe-se enquanto o dinheiro dura, e, nos últimos dias, todos passam fome. Então a mulher percorre humildemente a vizinhança e os arredores, pede emprestado alguma coisa, faz pequenas dividas no vendeiro e procura assim manter-se com os seus nos últimos dias da semana. Ao meio-dia, sentam-se todos juntos, diante de magros pratos, muitas vezes até esses faltam, e, fazendo planos, esperam pelo dia do pagamento. Enquanto passam fome sonham de novo com a felicidade. E assim as crianças desde a mais tenra idade, acostumam-se a essa miséria, o pior, porém, é quando, desde o começo, o marido segue o seu caminho e a mulher, por amor aos filhos, levanta-se contra isso. Então surgem as brigas, as disputas constantes. E à proporção que o marido se afasta da mulher, aproxima-se do álcool. Todos os sábados ele se embriaga. Por instinto de conservação, por si e pelos filhos, a mulher briga para tomar os últimos vinténs do marido quando este se dirige da fábrica para a espelunca. Por fim, domingo ou segunda-feira, à noite, ele volta para casa, embriagado e brutal, sempre sem vintém. Então desenrolam-se freqüentemente cenas lastimáveis.
Assisti tudo isso em centenas de casos. No começo sentia-me enojado ou irritado para, mais tarde, compreender toda a tragédia dessa miséria e as suas causas mais profundas. Infelizes vitimas de péssimas condições sociais.
Tão tristes, talvez, eram, outrora, as condições das habitações. A crise de casas para os ajudantes de operários de Viena era horrível. Ainda hoje sinto calafrios quando penso naqueles horríveis covis, as estalagens e nas habitações coletivas, naqueles sombrios quadros de sujeira e de escândalos. Que poderia resultar daí, quando desses covis de miséria a torrente de escravos abandonados se lançasse sobre a outra parte da humanidade, livre de cuidados, despreocupada?
Sim, o resto do mundo é despreocupado. Despreocupado fica, deixando que as coisas sigam o seu caminho, sem pensar que, na sua falta de intuição, a revanche terá lugar, mais cedo ou mais tarde, se em tempo os homens não modificarem essa triste realidade.
Quanto agradeço hoje à Providência o ter-me lançado nessa escola! Aí eu não podia mais sabotar o que não me era agradável. Essa escola educou-me depressa e solidamente.
A menos que eu não quisesse perder a esperança nos homens com quem convivia outrora, deveria fazer a diferença entre a vida que aparentavam e as razões da mesma. Tudo isso deveria, pois, ser suportado sem desânimo. Então, de toda essa infelicidade e miséria, de toda essa sujidade e degradação, deveriam surgir na minha mente não mais homens, mas miseráveis produtos de leis miseráveis. Por isso, a gravidade da luta pela vida que sustentei, evitou que eu capitulasse por mero sentimentalismo ante os pecos resultados desse processo de evolução.
Não, isso não deveria ser compreendido assim.
Já, naqueles tempos, eu havia chegado à conclusão de que só um caminho duplo poderia conduzir ao objetivo da melhoria dessa situação: um mais profundo sentimento de responsabilidade no sentido do estabelecimento de melhores bases para a nossa evolução, combinado isso com a brutal resolução de demolir todas as incorrigíveis excrescências.
Assim como a natureza concentra os seus maiores esforços não na conservação do que existe mas no cultivo do que cria, para continuação da espécie, assim também na vida humana trata-se menos de melhorar artificialmente o que há de mau - o que, pela natureza humana, em noventa e nove por cento dos casos é impossível - do que, desde o início, assegurar, por melhores métodos, a evolução das novas criações
Já durante a minha luta pela vida em Viena, tornou-se evidente ao meu espírito que a atividade social nunca deverá ser vista como uma obra de proteção sem- finalidade e irrisória, mas sim na remoção de defeitos substanciais na organização de nossa vida econômica e cultural que possam concorrer para a degeneração dos indivíduos ou pelo menos para o seu desvio.
A dificuldade dessa maneira de proceder em face dos últimos e brutais meios contra os delitos dos inimigos do Estado, jaz justamente na incerteza do julgamento sobre os. motivos íntimos ou causas principais dos fenômenos contemporâneos.
Essa incerteza é fundada na convicção da culpa de cada um nessas tragédias do passado e inutiliza toda séria e firme resolução. Causa ao mesmo tempo, a fraqueza e a indecisão na execução até mesmo das mais necessárias medidas de conservação.
Quando um tempo vier não mais empanado pela sombra da consciência da própria culpabilidade, a conservação de si mesmo criará a tranqüilidade íntima, a força exterior, brutal e sem considerações, para matar os maus rebentos da erva ruim.
Como o Estado Austríaco praticamente desconhecia qualquer legislação social, sua incapacidade para o combate de morte aos maus germes saltava diante dos nossos olhos em toda sua evidência.
Eu não sei o que naqueles tempos mais me horrorizava, se 'a miséria econômica dos meus camaradas, se a sua grosseria espiritual .e moral e o nível baixo de sua cultura.
Quantas vozes não se tomava de cólera a nossa burguesia, quando, da boca de algum miserável vagabundo, ouvia a declaração de que lhe era indiferente ser ou não alemão, contanto que ele tivesse a sua subsistência garantida.
Essa falta de orgulho nacional, é, então, censurada da maneira mais incisiva e a repulsa por um tal modo de sentir é expressa em termos enérgicos.
Quantos, porém, já se fizeram a pergunta sobre quais eram as causas de possuírem eles próprios melhores sentimentos?
Quantos compreendem a infinidade de recordações pessoais sobre a grandeza da pátria, da nação,' em todas as fronteiras da vida artística e cultural que lhes inspiram o justo orgulho de poderem pertencer a um povo tão favorecido?
Quantos pensam na dependência do orgulho nacional em relação ao conhecimento das grandezas da Pátria em todos esses domínios?
Refletem nossos círculos burgueses em que irrisória extensão esses motivos de orgulho nacional se apresentam ao povo?
Ninguém se desculpe com o argumento de que "em outros países a coisa não se passa de outra maneira" e que, não obstante, o trabalhador orgulha-se da sua nacionalidade. Mesmo que isso fosse assim, não poderia servir como desculpa para a nossa própria negligência. Tal, porém, não se dá. O que nós sempre pintamos como uma educação "chauvinística" dos franceses, por exemplo, não é mais do que a exaltação das grandezas da França em todos os domínios da Cultura, ou da "civilisation", como a denominam os nossos vizinhos.
O jovem francês não é educado para o objetivismo, mas para as opiniões subjetivas, que a gente só pode avaliar, quando se trata da significação das grandezas políticas ou culturais da sua pátria.
Essa educação terá que ser sempre restrita aos grandes e gerais pontos de vista que, se preciso, por meio de eterna repetição, se gravem na memória e nos sentimentos do povo.
Entre nós, aos erros por omissão, junta-se ainda a destruição do pouco que o indivíduo tem a felicidade de aprender na escola. O envenenamento político do nosso povo elimina ainda esse pouco do coração e da memória das vastas massas, quando a necessidade e os sofrimentos já não o tinham feito.
Pense-se no seguinte.
Em um alojamento subterrâneo, composto de dois quartos abafados, mora uma família proletária de sete pessoas. Entre os cinco filhos, suponhamos um de três anos. É esta a idade em que a consciência da criança recebe as primeiras impressões. Entre os mais dotados encontra-se, mesmo na idade madura, vestígio da lembrança desse tempo. O espaço demasiado estreito para tanta gente não oferece condições vantajosas para a convivência. Brigas e disputas, só por esse motivo, surgirão freqüentemente. As pessoas não vivem umas com as outras, mas se comprimem umas contra as outras. Todas as divergências, sobretudo as menores, que, nas habitações espaçosas, podem ser sanadas por um ligeiro isolamento, conduzem aqui a repugnantes e intermináveis disputas. Para as crianças isso é ainda suportável. Em tais situações, elas brigam sempre e esquecem tudo depressa e completamente. Se, porém, essa luta se passa entre os pais, quase todos os dias, e de maneira a nada deixar a desejar em matéria de grosseria, o resultado de uma tal lição de coisas faz-se sentir entre as crianças. Quem tais meios desconhece dificilmente pode fazer uma idéia do resultado dessa lição objetiva, quando essa discórdia recíproca toma a forma de grosseiros desregramentos do pai para com a mãe e até de maus tratos nos momentos de embriaguez. Aos seis anos, já o jovem conhece coisas deploráveis, diante das quais até um adulto só horror pode sentir. Envenenado moralmente, mal alimentado, com a pobre cabecinha cheia de piolhos, o jovem "cidadão" entra para a escola.
A custo ele chega a ler e escrever. Isso é quase tudo. Quanto a aprender em casa, nem se fale nisso. Até na presença dos filhos, mãe e pai falam da escola de tal maneira que não se pode repetir e estão sempre mais prontos a dizer grosserias do que pôr os filhos nos joelhos e dar-lhes conselhos. O que a criança ouve em casa não é de molde a fortalecer o respeito às pessoas com que vai conviver. Ali nada de bom parece existir na humanidade; todas as instituições são combatidas, desde o professor até às posições mais elevadas do Estado. Trata-se de religião ou da moral em si, do Estado ou da sociedade, tudo é igualmente ultrajado da maneira mais torpe e arrastado na lama dos mais baixos sentimentos. Quando o rapazinho, apenas com quatorze anos, sai da escola, é difícil saber o que é maior nele: a incrível estupidez no que diz respeito a conhecimentos reais ou a cáustica imprudência de suas atitudes, aliada a uma amoralidade que, naquela idade, faz arrepiar os cabelos.
Esse homem, para quem já quase nada é digno de respeito, que nada de grande aprendeu a conhecer, que, ao contrário, conhece todas as vilezas humanas, tal criatura, repetimos, que posição poderá ocupar na vida, na qual ele está à margem?
De menino de treze anos ele passou, aos quinze, a um desrespeitador de toda autoridade.
Sujidade e mais sujidade, eis tudo o que ele aprendeu. E isso não é de molde a estimulá-lo a mais elevadas aspirações.
Agora entra ele, pela primeira vez, na grande escola da vida.
Então começa a mesma existência que nos anos da - meninice ele aprendeu de seus pais. Anda para cima e para baixo, entra em casa Deus sabe quando, para variar bate ele mesmo na alquebrada criatura que foi outrora sua mãe, blasfema contra Deus e o mundo e, enfim, por qualquer motivo especial, é condenado e arrastado a uma prisão de menores.
Lá recebe ele os últimos polimentos.
O mundo burguês admira-se, no entanto, da falta de "entusiasmo nacional" deste jovem "cidadão".
A burguesia vê, como no teatro e no cinema, no lixo da literatura e na torpeza da imprensa, dia a dia, o veneno se derramar sobre o povo, em grandes quantidades, e admira-se ainda do precário "valor moral", da "indiferença nacional" da massa desse povo, como se a sujeira da imprensa e do cinema e coisas semelhantes pudessem fornecer base para o conhecimento das grandezas da Pátria, abstraindo-se mesmo a educação individual anterior. Pude então bem compreender a seguinte verdade, em que jamais havia pensado:
O problema da "nacionalização" de um povo deve começar pela criação de condições sociais sadias como fundamento de uma possibilidade de educação do indivíduo. Somente quem, pela educação e pela escola, aprende a conhecer as grandes alturas, econômicas e, sobretudo, políticas da própria Pátria, pode adquirir e adquirirá, certamente, aquele orgulho íntimo de pertencer a um tal povo. Só se pode lutar pelo que se ama, só se pode amar o que se respeita e respeitar o que pelo menos se conhece.
Logo que o interesses pela questão social foi em mim despertado, comecei a estudá-la profundamente. Aos meus olhos surgia um novo mundo até então desconhecido.
No ano de 1909 para 1910, minha própria situação modificou se um pouco porque não precisava mais ganhar o pão de cada dia como ajudante de operário. Já trabalhava, por minha conta, como desenhista e aquarelista. Continuava a ganhar muito pouco - o essencial para viver - mas em compensação tinha lazeres para aperfeiçoar-me na profissão que havia escolhido. Já não entrava em casa, à noite, como antigamente, cansado ao extremo, incapaz de parar a vista em um livro sem adormecer dentro de pouco tempo. Meu trabalho de agora corria paralelo com a minha profissão artística. Podia, então, como senhor do meu próprio tempo, dividi-lo melhor do que antes.
Eu pintava para ganhar o pão e estudava por prazer.
Assim foi possível às minhas observações sobre a questão social juntar o complemento teórico indispensável. Eu estudava quase tudo que sobre esse assunto se podia assimilar em livros, dando assim às minhas próprias idéias base mais sólida.
Creio que os que comigo conviviam naquele tempo tinham-me por um tipo esquisito.
Era natural que eu, com ardor, satisfizesse à minha paixão pela arquitetura. Ao lado da música, a arquitetura me parecia a rainha das artes. Minha atividade, em tais condições, não era um trabalho, mas um grande prazer. Podia ler ou desenhar até tarde da noite, sem cansar-me absolutamente. Assim fortalecia-se a convicção de que o meu belo sonho, depois de longos anos, transformar-se-ia em realidade. Estava inteiramente convencido de um dia conquistar um nome como arquiteto.
Não me parecia muito significativo que eu também tivesse o maior interesse por tudo que se relacionasse com a política. Ao contrário, isso era, em minha opinião, um dever natural de cada ser pensante. Quem nada entende de política perde o direito a qualquer critica, a qualquer reivindicação.
Também sobre esse assunto li e aprendi muito.
Sob o nome de leitura, concebo coisa muito diferente do que pensa a grande maioria dos chamados intelectuais.
Conheço indivíduos que lêem muitíssimo, livro por livro letra por letra, e que, no entanto, não podem ser apontados como "lidos". Eles possuem uma multidão de "conhecimentos", mas o seu cérebro não consegue executar uma distribuição e um registro do material adquirido. Falta-lhes a arte de separar, no livro, o que lhes é de valor e o que é inútil, conservar para sempre de memória o que lhes interessa e, se possível, passar por cima, desprezar o que não lhes traz vantagens, em qualquer hipótese não conservar consigo esse peso sem finalidade. A leitura não deve ser vista como finalidade, mas sim como meio para alcançar uma finalidade. Em primeiro lugar, a leitura deve auxiliar a formação do espírito, a despertar as disposições intelectuais e inclinações de cada um. Em seguida, deve fornecer o instrumento, o material de que cada um tem necessidade na sua profissão, tanto para o simples ganha-pão como para a satisfação de mais elevados desígnios. Em segundo lugar, deve proporcionar uma idéia de conjunto do mundo. Em ambos os casos, é, porem, necessário que o conteúdo de qualquer leitura não seja confiado à guarda da memória na ordem de sucessão dos livros, mas como pequenos mosaicos que, no quadro de conjunto, tomem o seu lugar na posição que lhes é destinada, assim auxiliando a formar este quadro no cérebro do leitor. De outra maneira, resulta um bric-á-brac de matérias aprendidas de cor, inteiramente inúteis, que transformam o seu infeliz possuidor em um presunçoso, seriamente convencido de ser um homem instruído, de entender alguma coisa da vida, de possuir cultura, ao passo que a verdade é que, a cada acréscimo dessa sorte de conhecimentos, mais se afasta do mundo, até que acaba em um sanatório ou, como "político", em um parlamento.
Nunca um cérebro assim formado conseguirá, da confusão de sua "ciência", retirar o que é apropriado às exigências de determinado momento, pois seu lastro espiritual está arranjado não na ordem natural da vida mas na ordem de sucessão dos livros, como os leu e pela maneira por que amontoou os assuntos no cérebro. Quando as exigências da vida diária dele reclamam o justo emprego do que outrora aprendeu então precisará mencionar os livros e o número das páginas e, pobre infeliz, nunca encontrará exatamente o que procura.
Nas horas críticas, esses "sábios", quando se vêem na dolorosa contingência de pesquisar casos análogos para aplicar às circunstâncias, só descobrem receitas falsas.
Não fosse assim e não se poderiam conceber os atos políticos dos nossos sábios heróis do Governo que ocupam as mais elevadas posições, a menos que a gente se decidisse a aceitar as suas soluções não como conseqüências de disposições intelectuais patológicas, mas como infâmias e trapaçarias.
Quem possui, porém, a arte da boa leitura, ao ler qualquer livro, revista ou brochura, dirigirá sua atenção para tudo o que, no seu modo de ver, mereça ser conservado durante muito tempo, quer porque seja útil, quer porque seja de valor para a cultura geral.
O que por esse meio se adquire encontra sua racional ligação no quadro sempre existente que a representação desta ou daquela coisa criou, e corrigindo ou reparando, realizará a justeza ou a clareza do mesmo. Se qualquer problema da vida se apresenta para exame ou contestação, a memória, por esta arte de ler, poderá recorrer ao modelo do quadro de percepção já existente, e por ele todas as contribuições coligidas durante dezenas de anos e que dizem respeito a esse problema são submetidas a uma prova racional e ao nosso exame, até que a questão seja esclarecida ou respondida.
Só assim a leitura tem sentido e finalidade.
Um leitor, por exemplo, que, por esse meio, não fornecer à sua razão os fundamentos necessários, nunca estará na situação de defender os seus pontos de vista ante uma contradita, correspondam os mesmos mil vezes à verdade. Em cada discussão a memória o abandonará desdenhosamente. Ele não encontrará razões nem para o fortalecimento de suas afirmações, nem para a refutação das idéias do adversário. Enquanto isso acarreta, como no caso de um orador o ridículo da própria pessoa, ainda se pode tolerar; de péssimas conseqüências é, porém, que esses indivíduos que "sabem" tudo e não são capazes de coisa alguma, sejam colocados na direção de um Estado.
Muito cedo esforcei-me por ler por aquele processo e fui, da maneira mais feliz, auxiliado pela memória e pela razão. Observadas as coisas por esse aspecto, foi me fecundo e proveitoso, sobretudo o tempo que passei em Viena. A experiência da vida diária servia de estímulo para sempre novos estudos dos mais diversos problemas. Quando eu, por fim, cheguei à situação de poder fundamentar a realidade na teoria e tirar a prova da teoria na experiência, na prática, estava em condições de evitar o excesso de apego à teoria, ou descer demais à realidade.
Assim, a experiência da vida diária, nesse tempo, em dois dos mais importantes problemas, além do social, tornou-se definitiva e serviu de estimulante para sólido estudo teórico.
Quem sabe se eu algum dia me teria aprofundado na teoria e na vida do marxismo, se, outrora, eu não tivesse quebrado a cabeça com esse problema? O que eu, na minha mocidade, conhecia sobre a social democracia era muito pouco e muito errado.
Causava-me intenso prazer que a social democracia dirigisse a luta pelo direito do voto secreto e universal. A minha razão já me dizia, porém, que essa conquista deveria levar a um enfraquecimento do regime dos Habsburgos, por mim já tão odiado.
Na convicção de que o Estado danubiano nunca se manteria sem o sacrifício do espírito alemão, e que o mesmo prêmio de uma lenta eslavização do elemento germânico de modo algum ofereceria garantia de um governo verdadeiramente viável, pois a força criadora do Estado dos eslavos é muito hipotética, via eu com prazer todo movimento que, na minha imaginação, poderia contribuir para o desmembramento desse Estado de dez milhões de alemães, inviável e condenado à morte. Quanto mais o palavrório corroía o parlamento, mais próximo deveria estar a hora da ruína desse Estado babilônico e com ela também a hora da libertação dos meus compatriotas austro-alemães. Só assim se poderia voltar à antiga anexação à mãe-pátria.
Por isso, a atividade da social-democracia não me parecia antipática. Como esse movimento se preocupava em melhorar as condições vitais do operariado - como eu acreditava na minha ingenuidade de outrora - pareceu-me melhor falar a seu favor do que contra. O que mais me afastava da social-democracia era sua posição de adversária em relação ao movimento pela conservação do espírito germânico, a deplorável inclinação em favor dos "camaradas" eslavos que só aceitavam esse alerta quando era acompanhado de concessões práticas, repelindo-o, arrogantes e orgulhosos, quando não viam interesses. Davam, assim, ao importuno mendigo a paga merecida.
Na idade de dezessete anos, a palavra marxismo era-me pouco conhecida, enquanto socialismo e social-democracia pareciam-me concepções idênticas. Foi preciso, também, nesse caso, que o punho forte do destino me abrisse os olhos para essa maldita maneira de ludibriar o povo.
Até então eu só tinha contato com a social-democracia como observador em algumas demonstrações coletivas, sem possuir nenhuma idéia da mentalidade de seus adeptos ou da essência da doutrina. De repente. pude sentir os efeitos de sua doutrinação e de sua maneira de encarar o mundo. O que, talvez só depois de dezenas de anos, tivesse acontecido, aprendi agora no decurso de poucos meses, isto é, a verdadeira significação de uma peste ambulante sob a máscara de virtude social e amor ao próximo e da qual se deve depressa libertar a terra, pois, ao contrário, muito facilmente a humanidade será por ela imolada.
No serviço de construções teve lugar o meu primeiro encontro com os sociais-democratas. Logo de começo, não foi muito agradável. Minhas roupas ainda estavam em ordem, minha linguagem era cuidada, minha vida comedida. Tinha tanto que lutar com a minha sorte que pouco podia cuidar do que me cercava. Só procurava trabalho para não passar fome e para ter a possibilidade de continuar, mesmo lentamente, a minha educação. Talvez eu não me tivesse absolutamente preocupado com o novo meio em que me achava, se, 1á no terceiro ou quarto dia, não se tivesse dado um fato que me forçou a tomar imediatamente uma posição definida: fui intimado a entrar no sindicato.
Meus conhecimentos sobre organização sindical eram então quase nulos. Nem a sua utilidade nem a sua inutilidade podia eu aquilatar. Quando me esclareceram que eu deveria entrar, recusei-me. Fundamentava a minha resolução com a razão de que eu não entendia do assunto e que, sobretudo, não me deixava levar à força para parte alguma. Talvez fosse a primeira a razão por que não me puseram imediatamente na rua. Talvez esperassem que, dentro de alguns dias, eu estivesse convertido ou pelo menos mais dócil.
Haviam-se enganado radicalmente.
Depois de quatorze dias, eu não poderia mais entrar para o sindicato, mesmo que o tivesse desejado. Nestes quatorze dias, pude conhecer de mais perto os que me cercavam, de modo que nenhuma força do mundo poderia mais arrastar-me a uma organização, cujos esteios me apareceram sob uma luz tão desfavorável.
Nos primeiros dias fiquei indignado. Ao meio-dia, uma parte dos operários ia para a estalagem próxima, enquanto a outra ficava no local da- construção e aí tinha o seu magro almoço. Estes eram casados, para os quais as mulheres, em miseráveis vasilhas, traziam a sopa do meio-dia. Para o fim da semana, o número desses era sempre maior. A razão disso só mais tarde compreendi.
Então conversava-se política.
Eu bebia minha garrafa de leite e comia o meu pedaço de pão, conservando-me sempre afastado, e estudava com atenção meus novos conhecidos ou refletia sobre a minha triste sorte. Não obstante isso, ouvia mais do que o suficiente. Pareceu-me freqüentemente que se aproximavam de mim de propósito para me forçarem a tomar uma posição. Em todo caso, como vim a saber, isso visava o efeito de me provocar.
Ali tudo se negava: a nação era uma invenção das classes capitalistas (que número infinito de vezes ouvi essa palavra!); a Pátria era um instrumento da burguesia para exploração das massas trabalhadoras; a autoridade da lei era simples meio de opressão do proletariado; a escola era instituto de cultura do material escravo e mantenedor da escravidão; a religião era vista como meio de atemorizar o povo para melhor exploração do mesmo; a moral não passava de uma prova da estúpida paciência de carneiro do povo. Não havia nada, por mais puro, que não fosse arrastado na lama mais asquerosa.
De começo, tentei manter-me em silêncio. Por fim, não podia mais. Comecei a tomar posição, comecei a contraditar. Então passei a compreendei- que essa oposição de nada valia, enquanto eu não possuísse conhecimentos seguros sobre os pontos debatidos. Comecei a pesquisar nas próprias fontes, de onde eles extraíam a sua fictícia sabedoria. Li livros sobre livros, brochuras sobre brochuras. No local do serviço, as coisas chegavam freqüentemente à exaltação. Eu discutia cada vez melhor, até que um dia foi empregado um meio que facilmente levava de vencida a razão: o terror, a força. Alguns dos defensores do lado contrário intimaram-me a abandonar a construção imediatamente ou a ser jogado do andaime. Como estava sozinho e a resistência seria impossível, preferi seguir o primeiro alvitre, adquirindo assim mais uma experiência.
Saí, enojado, mas, ao mesmo tempo, tão impressionado que já agora seria inteiramente impossível para mim abandonar a questão. Não. Depois da eclosão da primeira revolta, a obstinação de novo venceu. Estava firmemente resolvido a voltar, apesar de tudo para outro serviço de construção. Essa decisão foi fortalecida pela situação precária em que me encontrei algumas semanas mais tarde, depois de gastar as pequenas economias. Não me restava outra saída, quer eu quisesse quer não. E cena idêntica desenrolou-se, para acabar da mesma forma que a primeira.
Travou-se uma luta no meu íntimo, que se define nesta pergunta: isso é gente digna de pertencer a um grande povo?
Eis uma pergunta angustiosa. Se a respondermos afirmativamente, a luta por uma nacionalidade merecerá os trabalhos e os sacrifícios que os melhores fazem por um tal rebotalho? Se a resposta for negativa, então o nosso povo já está muito pobre em homens.
Com desânimo inquietador via eu, naqueles dias críticos e atormentados, a massa, que já não pertencia a seu povo, tornar-se um exército ameaçador.
Com que sentimentos diferentes fitava, então, as filas sem fim dos trabalhadores vienenses em um dia de demonstração coletiva! Durante quase duas horas, de pé, um dia, observei, com a respiração suspensa, a monstruosa onda humana que rolava lentamente. Tomado de um desânimo inquieto, abandonei a praça e dirigi-me para casa. No caminho, vi em uma tabacaria o "Arbeiterzeitung", órgão central da antiga social-democracia. Em um café popular, que eu freqüentava constantemente a fim de ler os jornais, esse periódico também era exposto à venda. Eu não podia, porém, fazer o sacrifício de passar uma vista por mais de dois minutos na folha infame, que, para mim, tinha o efeito do vitríolo.
Debaixo da acabrunhadora impressão que a demonstração coletiva havia produzido, senti uma voz íntima que me incitava a comprar o jornal e lê-lo inteiramente. À noite tratei disso, vencendo a crescente repulsa que sempre experimentava ao ver essa torneira de mentiras concentradas. Melhor do que em toda a literatura teórica, pude, pela leitura diária da imprensa social-democrática, estudar a essência do movimento e o curso das suas idéias.
Que diferença entre as cintilantes frases de liberdade, beleza e dignidade da literatura teórica, entre o fogo-fátuo do palavrório que, laboriosamente, aparenta a mais profunda e irresistível sabedoria, pregada com uma segurança profética, e a brutal virtuosidade da mentira da imprensa diária que trabalhava pela salvação da nova humanidade sem recuar ante nenhuma objeção, usando de todos os recursos da calúnia!
Uma é destinada aos estúpidos das camadas intelectuais médias e superiores, a outra às massas.
A meditação sobre a literatura e a imprensa dessa doutrinação, servia-me para descobrir de novo a minha gente.
O que, a princípio, me parecia um abismo intransponível, devia tornar-se motivo para amar cada vez mais o meu povo.
Só um louco poderia, depois de conhecer esse monstruoso trabalho de envenenamento, condenar ainda as vítimas do mesmo. Quanto mais independente eu me tornava nos anos seguintes, tanto mais longe alcançava a minha vista as causas íntimas do êxito da social-democracia. Então compreendendo a significação da exigência brutal feita ao operário para só ler jornais vermelhos, só freqüentar assembléias vermelhas, só ler livros vermelhos, etc., vi, muito claro, os efeitos violentos dessa doutrinação da intolerância.
A psique das massas é de natureza a não se deixar influenciar per meias medidas, por atos de fraqueza.
Assim como as mulheres, cuja receptividade mental é determinada menos por motivos de ordem abstrata do que por uma indefinível necessidade sentimental de uma força que as complete e, que, por isso preferem curvar-se aos fortes a dominar os fracos, assim também as massas gostam mais dos que mandam do que dos que pedem e sentem-se mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera nenhuma outra do que com a tolerante largueza do liberalismo. Elas não sabem o que fazer da liberdade e, por isso, facilmente sentem-se abandonadas.
A impudência do terrorismo espiritual passa-lhes despercebida, assim como os crescentes atentados contra a sua liberdade que as deveriam levar à revolta. Elas não se apercebem, de nenhum modo, dos erros intrínsecos dessa doutrinação. Elas vêem apenas a força incontrastável e a brutalidade de suas resolutas manifestações externas, ante as quais sempre se curvam.
Se uma doutrina que encerrasse mais inveracidade ao lado de idêntica brutalidade na propaganda, fosse oposta à social-democracia, triunfaria, do mesmo modo, por mais áspera que fosse a luta.
Em menos de dois anos, não só a doutrina da social-democracia mas também o seu emprego como instrumento prático, tornaram-se-me claros.
Eu compreendi o infame terror espiritual que esse movimento exerce especialmente sobre a burguesia.
A um dado sinal, os seus propagandistas lançam um chuveiro de mentiras e calúnias contra o adversário que lhes parece mais perigoso, até que se rompam os nervos dos agredidos que, para terem tranqüilidade, se rendem ao inimigo.
Mas é do destino dos tolos nunca alcançarem o sossego.
O jogo recomeça e repete-se inúmeras vozes, até que o pavor ante os monstros selvagens provoca uma significativa imobilidade do adversário.
Como a social democracia, por experiência própria, conhece muito bem o valor da força, lança-se mais violentamente contra aqueles em cuja individualidade descobre algum sistema de resistência. Por outro lado, incensa todos os fracos do lado oposto, a princípio cautelosamente e depois abertamente, conforme essas qualidades morais sejam reais ou imaginárias.
Eles receiam menos um gênio impotente e sem vontade do que uma natureza forte, mesmo intelectualmente modesta.
A social-democracia se recomenda sobretudo aos fracos de espírito e de caráter.
Esse partido sabe aparentar que só ele conhece o segredo da paz e tranqüilidade, enquanto, cautelosamente mas de maneira decidida, conquista uma posição depois da outra, ora por meio de discreta pressão, ora através de requintadas escamoteações em momentos em que a atenção geral está dirigida para outros assuntos, não quer por ele ser despertada ou tem a oportunidade como não merecendo grande interesses ou receia provocar o perverso adversário.
Essa é uma tática que, tendo em conta exatamente tidas as fraquezas humanas, é coroada de êxito matemático, quando o adversário não aprende a usar gás venenoso contra gás venenoso, isto é, as mesmas armas do agressor.
É preciso que se diga às naturezas fracas que se trata de uma luta de vida ou de morte.
Não menos compreensível para mim tornou-se a significação do terror material em relação aos indivíduos e às massas.
Aqui também havia um cálculo exato de atuação psicológica. O terror nos lugares de trabalho, nas fábricas, nos locais de reunião e por ocasião das demonstrações coletivas, era sempre coroado de êxito, enquanto um terror maior não se lhe opunha.
Quando acontece essa última hipótese, o partido, em gritos de pavor, embora habituado a desrespeitar a autoridade do Estado, em altos berros pedirá seu auxílio, para, na maioria dos casos, no meio da confusão geral, alcançar o seu verdadeiro objetivo, isto é: encontrar covardes autoridades que, na tímida esperança de poder de futuro contar com o temível adversário, auxiliem-no a combater o inimigo.
Que impressão um tal êxito exerce sobre o espírito das vastas massas e dos seus adeptos, assim como sobre o vencedor, só pode avaliar quem conhece a alma do povo, não através de livros mas pelo estudo da própria vida, pois, enquanto, no círculo dos vencedores, o triunfo alcançado é tido como uma vitória do direito de sua causa, o adversário batido, na maioria dos casos, duvida do êxito de uma outra resistência.
Quanto melhor eu conhecia os métodos da violência material, tanto mais me inclinava a desculpar as centenas de milhares de proletários que cediam ante a força bruta.
A compreensão desse fato devo principalmente aos meus antigos tempos de sofrimentos, os quais me fizeram entender o meu povo e fazer a diferença entre as vítimas e os seus condutores.
Como vítimas devem ser vistos os que foram submetidos a essa situação corruptora. Quando eu me esforçava por estudar, na vida real, a natureza íntima dessas camadas "inferiores", não podia delas fazer uma idéia justa, sem a segurança de que, nesse meio, também encontrava qualidades recomendáveis, como sejam capacidade de sacrifício, fiel camaradagem, extraordinária sobriedade, discreta modéstia, virtudes essas muito comuns, sobretudo nos antigos sindicatos. Se é verdade que essas virtudes se diluíam cada vez mais nas novas gerações, sob a atuação das grandes cidades, incontestável é também que muitas conseguiam triunfar sobre as vilezas comuns da vida. Se esses homens, bons e bravos, na sua atividade política, entravam nas fileiras dos inimigos do nosso povo e a estes auxiliavam, era porque não compreendiam e nem podiam compreender a vileza da nova doutrina ou porque, em ultima ratio, as injunções sociais eram mais fortes do que todas as vontades em contrário. As contingências da vida a que, de um modo ou de outro, estavam fatalmente sujeitos, faziam-nos entrar no acampamento da social-democracia.
Como a burguesia, inúmeras vezes, da maneira mais inepta e também a mais imoral, fazia frente às mais justas aspirações coletivas, sem muitas vezes retirar ou esperar retirar qualquer proveito de uma tal atitude, mesmo o mais ordeiro trabalhador saia da organização sindical para tomar parte na atividade política.
Milhões de proletários, na intimidade, foram, sem dúvida, de começo, inimigos do partido social-democrático. Foram, porém, derrotados na sua oposição pela conduta idiota do partido burguês combatendo todas as reivindicações da massa dos trabalhadores.
A impugnação cega da burguesia a todos os ensaios por uma melhoria nas condições do trabalho, tais como um aparelhamento de defesa contra as máquinas, a proteção ao trabalho das crianças e a proteção da mulher, pelo menos nos últimos meses de gravidez, tudo isso auxiliou a social-democracia a pegar as massas nas suas redes. Esse partido sabia aproveitar todos os casos em que pudesse manifestar sentimentos de piedade para com os oprimidos. Nunca mais poderá a nossa burguesia política reparar os seus erros, pois, enquanto ela se opunha a todas as tentativas por uma remoção dos males sociais, semeava ódio e justificava mesmo as afirmações dos inimigos da nacionalidade, segundo as quais só o Partido Social Democrata defendia os interesses das classes produtoras.
Aí estão as razões morais da resistência dos sindicatos e os motivos por que prestaram os melhores serviços àquele partido político.
Nos meus anos de aprendizado em Viena fui forçado, quer quisesse quer não, a tomar posição no problema dos sindicatos.
Como eu os via como parte integral e indivisível do Partido Social Democrata, minha decisão foi rápida e falsa.
Como era natural, recusei-me a entrar para o sindicato.
Também nesta importante questão foi a vida real que me serviu de mestre.
O resultado foi uma reviravolta nos meus primeiros julgamentos.
Aos vinte anos, já fazia a diferença entre o sindicato como meio de defesa dos direitos sociais dos empregados e de luta pela melhoria das condições de vida dos mesmos e o sindicato como instrumento do partido na luta política de classes.
Como a social-democracia compreendeu a enorme significação do movimento sindicalista, assegurou para si a colaboração desse instrumento e dai o seu êxito; como a burguesia não a compreendeu, isso lhe custou a sua posição política. Na sua teimosa oposição, imaginou a burguesia fazer parar uma evolução fatal e, na realidade, conseguiu apenas forçá-la a tomar um caminho ilógico. Dizer-se que o movimento sindical em si é inimigo da Pátria é uma idiotice, e além disso, uma inverdade. O contrário é que é a verdade. Se uma atividade sindical tem como objetivo a melhoria de uma classe que constitui uma das colunas mestras da nação e se esforça por realizá-lo, essa atividade não só não se exerce contra a Pátria e o Estado mas, no verdadeiro sentido da palavra, consulta os interesses nacionais. É fora de qualquer dúvida que essa atuação auxilia a criar programas sociais, sem o que nem se deve pensar em uma educação nacional coletiva. Esse movimento atinge seu maior mérito quando, pelo combate aos cancros sociais existentes, ataca as causas das moléstias do corpo e do espírito, contribuindo para a conservação da saúde do povo. É ociosa a discussão sobre as vantagens dessas agitações.
Enquanto, entre os que distribuírem trabalho, houver homens que não compreendam a questão social ou possuam idéias erradas de direito e de justiça, é não só direito mas dever dos por eles empregados, - que aliás formam uma parte do nosso povo - proteger os interesses da quase totalidade contra a avidez ou a irracionalidade de poucos, pois a manutenção da fé na massa do povo é para o bem-estar da nação tão importante quanto a conservação da sua saúde.
Ambos esses interesses serão seriamente ameaçados pelos indignos empregadores que não têm os mesmos sentimentos da coletividade, de que vivem divorciados. Devido à sua condenável atitude, inspirada na ambição ou na intransigência, nuvens ameaçadoras anunciam tempestades futuras.
Remover as causas de uma tal evolução é conquistar um mérito em relação à Pátria. Agir ao contrário é trabalhar contra os interesses da nação.
Não se diga que cada um tem independência suficiente para tirar todas as conclusões das injustiças reais ou fictícias que lhe são feitas. Não, isso é hipocrisia e deve ser visto como tentativa para desviar a atenção das soluções justas.
A alternativa é a seguinte: evitar acontecimentos nocivos à coletividade consulta ou não os interesses da nação? Na primeira hipótese, a luta deve ser aceita com todas as armas que possam assegurar o triunfo.
O trabalhador, individualmente, não está nunca em condições de empenhar-se, com êxito, em uma luta contra o poder do grande empregador. Nesse conflito não se trata do problema da vitória do direito. Se assim fosse, o simples reconhecimento desse direito faria cessar toda luta, pois desapareceria, em ambas as partes, o desejo de combater. Trata-se, porém, de uma questão de força. Naquele caso, o sentimento de justiça por si só faria terminar a luta de modo honroso, ou melhor, nunca se chegaria a ela. Se atos indignos ou contrários aos interesses sociais arrastam à -reação, a luta só poderá ser decidida em favor do lado mais forte, salvo se a justiça se dispuser à solução desses males.
Além disso, é evidente que o empregador, apoiado na força concentrada de suas empresas, terá que enfrentar o corpo de empregados, se não quiser ser compelido a perder, desde o início, qualquer esperança de vitória.
Assim a organização sindical pode produzir o fortalecimento dos ideais sociais por unia atuação mais prática e, com isso, o afastamento de causas de irritação que sempre dão motivo a descontentamentos e a queixas. Se isso não acontece deve-se em grande parte àqueles que a todas as soluções legais das dificuldades do povo julgam opor obstáculos ou impedi-las por meio de sua influência política.
Enquanto a burguesia não compreendia a significação da organização sindical, ou, melhor, não queria entendê-la, e insistia em fazer-lhe oposição, a social-democracia punha-se ao lado do movimento combatido.
Vendo longe, ela criou para si uma base firme que nos momentos críticos, já lhe havia servido de último esteio. A verdade, porém, é que a antiga finalidade era, pouco a pouco, abandonada, para dar lugar a outros objetivos.
A social-democracia nunca pensou em solucionar os problemas reais do movimento profissional.
Em poucas décadas, nas mãos espertas da social-democracia, o movimento sindical de instrumento de defesa dos direitos sociais passou a ser instrumento de destruição da economia nacional.
Os interesses dos trabalhadores não deveriam em nada obstar a sua ação, pois, politicamente, o emprego de meios de compressão econômica sempre permite a extorsão e o exercício de violências a toda hora, sempre que, de um lado, há a necessária falta de escrúpulos e, do outro, a suficiente estupidez junta a uma paciência de cordeiro. E isso acontece nos dois campos em luta.
Já no começo deste século o movimento sindical, de há muito, havia deixado de servir ao seu objetivo de outrora.
De ano a ano, ele, cada vez mais, caía nas mãos dos políticos da social-democracia, para, por fim, ser utilizado apenas como pára-choque na luta de classes. Em conseqüência de permanentes conflitos deveria, finalmente, levar à ruína toda a organização econômica, pacientemente construída, arrastando o edifício do Estado à mesma sorte, pela destruição de suas fundações econômicas.
Cogitava-se cada vez menos da defesa de todos os interesses reais do proletariado, até chegar-se à conclusão de que a prudência política considerava como não aconselhável melhorar as condições sociais e culturais das grandes massas, pois, ao contrário, corria-se o perigo de que essas, tendo seus desejos satisfeitos, não mais poderiam ser eternamente utilizadas como tropas de combate facilmente manejáveis.
Essa evolução atemorizou de tal maneira os guias da luta de classes que eles, por fim, se opuseram a todas as salutares reformas sociais e, da maneira mais decidida, tomaram posição de combate às mesmas.
Na justificação dos fundamentos dessa atitude negativa e incompreensível nada deviam recear.
No campo burguês estava se escandalizado com essa visível falta de sinceridade da tática da social democracia, sem que, porém, dai se tirassem as mínimas conclusões para um acertado plano de ação. Justamente o receio da social-democracia diante de cada melhoria real da situação do proletariado em relação à profundidade de sua até então miséria cultural e social, talvez tivesse concorrido a arrancar esse instrumento das mãos dos representantes de classes
Isso não aconteceu, porém. Em vez de tomar a ofensiva, a burguesia deixou apertar-se cada vez mais o cerco em torno de si para, enfim, adotar providências inadequadas que, por muito tardias, tornaram-se sem eficiência, e, por isso mesmo, eram facilmente repelidas. Assim ficou tudo como antes, apenas o descontentamento tornou-se cada vez maior.
Os "sindicatos independentes", como uma nuvem tempestuosa, obscureciam o horizonte político, ameaçando também a existência dos indivíduos. Essas organizações se transformaram no mais temível instrumento de terror contra a segurança e independência da economia nacional, a solidez do Estado e a liberdade dos indivíduos.
Foram eles, sobretudo, que transformaram a concepção da democracia em uma frase asquerosa e ridícula, que profanava a liberdade e escarnecia, de maneira imperecível, da fraternidade, nesta proposição: "Se não quiseres ser dos nossos, nós te arrebentaremos a cabeça".
Assim começava eu a conhecer esses inimigos do "gênero humano".
No decurso dos anos, a opinião sobre eles desenvolveu-se e aprofundou-se, sem modificar-se, porém.
Quanto mais eu estudava o aspecto exterior da social-democracia, tanto mais crescia o desejo de penetrar na estrutura íntima dessa doutrina.
A literatura oficial do Partido de pouca utilidade me poderia ser na realização desse objetivo. Ela é, no que diz respeito a questões econômicas, falsa nas suas afirmações e conclusões e mentirosa quanto à finalidade política.
Daí a razão por que eu me sentia, de coração, afastado dos novos modos de expressão da eterna rabulice política e da sua maneira de descrever as coisas.
Com um inconcebível luxo de palavras de significação obscura, gaguejavam sentenças que deveriam ser ricas de pensamento como eram falhas de senso.
Só a decadência dos nossos intelectuais das grandes cidades poderia, neste labirinto da razão, sentir-se confortavelmente, para, no nevoeiro deste dadaismo literário, compreender a "vida íntima", apoiado na proverbial inclinação de uma parte do nosso povo, para sempre farejar a sabedoria profunda no meio dos paradoxos pessoais.
Enquanto eu, na realidade de suas demonstrações, pesava todas as mentiras e desatinos teóricos dessa doutrina, chegava, pouco a pouco, a uma compreensão mais clara da sua vontade.
Nestas horas apoderavam-se de mim idéias tristes e maus presságios. Vi diante de mim uma doutrina, constituída de egoísmo e de ódio, que, por leis matemáticas, poderá ser levada à vitória mas arrastará a humanidade à ruína.
Nesse ínterim, eu já tinha compreendido a ligação entre essa doutrina de destruição e o caráter de uma certa raça para mim até então desconhecida.
Só o conhecimento dos judeus ofereceu-me a chave para a compreensão dos propósitos íntimos e, por isso, reais da social-democracia. Quem conhece este povo vê cair-se-lhe dos olhos o véu que impedia descobrir as concepções falsas sobre a finalidade e o sentido deste partido e, do nevoeiro do palavreado de sua propaganda, de dentes arreganhados, vê aparecer a caricatura do marxismo.
Hoje é-me difícil, senão impossível, dizer quando a palavra judeu pela primeira vez foi objeto de minhas reflexões. Na casa paterna, durante a vida de meu pai, não me lembro de tê-la ouvido. Creio que ele já via nessa palavra a expressão de uma cultura retrógrada. No curso de sua vida, ele chegou a uma concepção mais ou menos cosmopolita do mundo combinada a um nacionalismo radical que, também, exercia seus efeitos sobre mim.
Na escola também não encontrei oportunidade que me pudesse levar a uma modificação desse modo de encarar as coisas, que me havia transmitido meu pai.
É verdade que, na escola profissional, eu havia conhecido um jovem judeu que era tratado por nós com certa prevenção, mas isso somente porque não tínhamos confiança nele, devido ao seu todo taciturno e a vários fatos que nos haviam escarmentado. Nem a mim nem aos outros despertou isso quaisquer reflexões.
Só dos meus quatorze para os quinze anos deparei freqüentemente com a palavra judeu, ligada em parte a conversas sobre assuntos políticos. Sentia contra isso uma ligeira repulsa e não podia evitar essa impressão desagradável que, aliás, sempre se apoderava de mim quando discussões religiosas se travavam na minha presença.
Nesse tempo eu não via a questão sob qualquer outro aspecto.
Em Linz havia muito poucos judeus. Com o decorrer dos séculos, o aspecto do judeu se havia europeizado e ele se tornara parecido com gente. Eu os tinha por alemães, Não me era possível compreender o erro desse julgamento, porque o único traço diferencial que neles via era o aspecto religioso diferente do nosso. Minha condenação a manifestações contrárias a eles, a perseguição que se lhes movia, por motivos de religião como eu acreditava, levavam-me à irritação, Eu não pensava absolutamente na existência de um plano regular de combate aos judeus.
Com essas idéias vim para Viena.
Absorvido pela avalancha de impressões que a arquitetura despertava, abatido pelo peso da minha própria sorte, eu não tinha olhos para observar a estrutura da população da grande cidade.
Embora Viena, já naquele tempo, possuísse duzentos mil judeus em uma população de dois milhões, não me apercebi desse fato. Nas primeiras semanas, os meus sentidos não puderam abarcar o conjunto de tantos valores e idéias novas. Só depois que, pouco a pouco, a serenidade voltou e as imagens confusas dos primeiros tempos começaram a esclarecer-se, é que mais acuradamente pude ver em torno de mim o novo mundo que me cercava e, então, deparei também com o problema judaico.
Não quero afirmar que a maneira por que eu os conheci me tenha sido particularmente agradável. Eu só via no judeu o lado religioso. Por isso, por uma questão de tolerância, considerava injusta a sua condenação por motivos religiosos. O tom, sobretudo da imprensa anti-semítica de Viena, parecia me indigno das tradições de cultura de um grande povo, Causava-me mal-estar a lembrança de certos fatos da Idade Média, cuja reprodução não desejava ver. Como esses jornais não valiam grande coisa - e a razão disso eu então não conhecia - via neles mais o produto de mesquinha inveja do que o resultado de uma questão de princípios, embora falsos.
Fortaleci-me nessa maneira de pensar pela forma infinitamente mais digna (assim pensava eu então) por que a grande imprensa respondia a todos esses ataques ou - o que me parecia de mais mérito ainda pelo silêncio de morte em que se mantinha.
Lia com fervor a chamada grande imprensa ("Neue Freie Presse", "Wiener Tageblatt", etc.) e ficava admirado ante a extensão dos assuntos que oferecia ao leitor assim como diante da objetividade das suas manifestações em cada caso particular. Apreciava o seu estilo elegante, distinto. Os exageros de forma não me agradavam, chocavam-me.
Porque eu tenha visto Viena assim, apresento como desculpa o esclarecimento que me dei a mim mesmo.
O que repetidamente me causava repugnância era a maneira indigna pela qual a imprensa bajulava a corte.
Não havia acontecimento na corte que não fosse comunicado aos leitores em tom do mais intenso entusiasmo ou da mais lamurienta consternação, prática essa que, mesmo tratando-se do "mais sábio monarca" de todos os tempos, podia ser comparada aos excessos incontidos de um galo silvestre.
Isso me parecia exagerado e era por mim visto como uma mancha para a Democracia liberal.
Pretender as graças desta corte e de maneira tão indigna era o mesmo que trair a dignidade da nação.
Esta foi a primeira sombra que devia perturbar as minhas afinidades espirituais com a grande imprensa de Viena.
Como sempre, também em Viena, eu acompanhava todos os acontecimentos da Alemanha com o maior ardor, quer se tratasse de questões políticas ou de problemas culturais.
Com uma admiração a que se juntava o maior orgulho, eu comparava a elevação do Reich com a decadência do Estado austríaco, Enquanto os acontecimentos da política externa, na sua maior parte, provocavam geral contentamento, a política interna freqüentemente dava margem a sombrias aflições. A campanha que, naquele tempo, se movia contra Guilherme II, não tinha a minha aprovação, Nele eu não via só o Imperador dos Alemães mas também o criador da frota alemã. A imposição feita pelo Reichstag de não permitir ao Kaiser fazer discursos indignava-me de modo tão extraordinário, porque essa proibição partia de uma fonte que, aos meus olhos, nenhuma autoridade possuía, atendendo a que, em um só período de sessão, esses gansos do parlamento haviam grassitado mais idiotices do que o poderia fazer, durante séculos, uma inteira dinastia de imperadores, dado o seu muito menor número.

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