“O SOFRIMENTO É OPCIONAL”: UMA ANÁLISE DO USO DO CONCEITO DE
RESILIÊNCIA NO TRABALHO NA MÍDIA PARA O GRANDE PÚBLICO
Carlos Manoel Lopes Rodrigues, Claudia Regina Corrêa
https://www.researchgate.net/publication/308521975_O_sofrimento_e_opcional_uma_analise_do_uso_do_conceito_de_resiliencia_no_trabalho_na_midia_para_o_grande_publico
Introdução
O mundo do trabalho vem se modificando radicalmente nas últimas décadas na esteira de
uma série de inovações tecnológicas e de práticas de gestão que levam os princípios da
racionalização, da eficiência e da lucratividade ao extremo, criando um cenário marcado
pela pressão, instabilidade e competividade, que afeta diretamente os trabalhadores em
suas práticas laborais e suas vidas.
Este conjunto de práticas, técnicas e tecnologias busca, em última análise intensificar a
exploração do trabalho humano em dimensões que o modelo fordista-taylorista não se aventurava, pois se centrava nas atividades per si, ao contrário da tendência
contemporânea de atingir as dimensões potencialmente geradoras de valor, isto é “a
exploração, de fato, foi reforçada pelo emprego de capacidades humanas (relacionamento,
disponibilidade, flexibilidade, envolvimento afetivo, engajamento etc.)” (BOLTANSKI;
CHIAPELLO, 2009, p. 277).
Entretanto, apenas o emprego de novos modelos de gestão não garante o acesso as
capacidades humanas desejadas, principalmente àquelas que podemos colocar na
dimensão da subjetividade, necessitando, portanto de outras formas de aliciamento ou
mesmo cooptação dos trabalhadores, que atuem do ponto de vista simbólico, nos termos
de Alves (2011), que realize a “captura da subjetividade”, destacando-se neste intento o
uso de práticas discursivas que incutam, naturalizem e legitimem a ideologia que baseia
estes modelos, por um lado, e leve os trabalhadores a se engajarem no desenvolvimento
das capacidades que estes modelos exigem, por outro.
Assim os veículos de comunicação destinados ao grande público assumem papel especial nesta estratégia de mobilização dos trabalhadores no desenvolvimento das capacidades desejáveis pelos modelos de gestão contemporâneos, assumindo-os como próprios - “como efeitos corporificados da sociedade do trabalho (...) exigidos/as em seus atributos de equilibristas para fazerem frente aos desafios desestruturantes da nova ordem do trabalho” (FONSECA, 2002, p. 24), principalmente os atributos que os tornem resistentes a esta ambiente adverso que se configura no mundo do trabalho. E neste intento a apropriação de conceitos científicos, por parte da mídia em geral, serve de recurso de legitimação, como por exemplo, o conceito de resiliência no trabalho que tem surgido com certa frequência nos meios de comunicação, como uma capacidade necessária e desejável os trabalhadores.
Com objetivo de contribuir no entendimento deste cenário, este artigo apresenta a pesquisa exploratória-descritiva, onde se analisou como o conceito de resiliência no trabalho foi utilizado em 15 reportagens publicadas no período de 2010 a 2014 em revistas nacionais destinados ao grande público; optou-se pelo formato digital destas revistas, tendo em vista o incremento do acesso à internet nos últimos anos no Brasil – em 2013 estimava-se um total de 80,9 milhões de usuários brasileiros de internet, sendo que 84% a utilizam para busca de informações (CENTRO DE ESTUDO SOBRE AS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO E DA COMUNICAÇÃO, 2013). Segue-se a esta introdução uma breve problematização sobre o uso de conceitos científicos no discurso midiático e uma pequena exposição sobre o conceito de resiliência no trabalho; posteriormente apresenta-se a metodologia de pesquisa adotada, bem como os resultados e sua discussão; e por último as considerações com foco nas limitações e possibilidades de continuidade de estudos.
Mídia e Conceitos Científicos
É inegável a influência e alcance dos meios de comunicação na sociedade contemporânea, influência e alcance estes potencializados, em grande parte, pelo desenvolvimento das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), mas também pelas “enormes capacidades de representação das pessoas, da sociedade e da cultura; de produção e reprodução, de construção e reconstrução dos processos sociais e culturais” (SOUSA, 2006, p. 539), em outras palavras, por portar e construir sentidos socialmente partilhados materializados em práticas discursivas que, como salienta van Dijk (2008) vinculam-se a interesses de grupos e seus membros, constituindo práticas de poder.
Neste sentido, o discurso midiático, diferentemente de outros discursos, não limita-se a
um único domínio de saber ou experiência, recorrendo e se apropriando do discurso de saberes distintos que possam legitimar de alguma forma seu próprio discurso, sem no
entanto, se limitar, ou mesmo se preocupar, com a exatidão do sentido dado durante ou
depois da apropriação:
“A apropriação e a nova tradução por parte do discurso midiático de alguns
aspectos dos saberes de outras áreas, especificamente da ciência, tendem a dar
naturalidade às pretensões legítimas construídas historicamente pelos atores
autorizados desses saberes. A mídia "dilui" o poder do discurso técnico-
científico, ela se ancora na ciência como uma instância cultural significativa, com
uma abrangência totalizante.” (SERRA; SANTOS, 2003, p. 696)
Especificamente quanto à apropriação de conceitos científicos pela mídia, parece ocorrer
em grande parte por um ideal de objetividade e poder explicativo da ciência, já que “cultivamos, ao longo da modernidade, a crença de que a verdade da ciência não comporta versões, dado ser a ciência justamente o método mais perfeito desenvolvido pelo homem para a apreensão da verdade” (TEIXEIRA, 2002, p. 134), afastando assim do público a dúvida e a crítica, pois o discurso se torna pretensamente neutro, “testado e aprovado”.
Entretanto, retomando a posição de van Dijk (2008, p.18), este discurso, como todos os
outros, pode estar sob controle, e nele incluídos os “conhecimentos, opiniões, atitudes,
ideologias, como também às outras representações pessoais ou sociais” dos que o
operaram, possibilitando sua utilização como ferramenta de poder.
Desta forma, o uso de conceitos científicos na grande mídia, surge como estratégia de
legitimação do discurso midiático, por vezes, aumentando a possibilidade de exercício de
poder por meio deste discurso, seja pela indução de padrões de comportamento, como o
encontrado por Serra e Sousa (2003), onde padrões de beleza específicos e práticas
alimentares eram veiculados em uma publicação para adolescentes, com suposto aval
cientifico; seja pela justificação de uma situação social específica, por exemplo, naturalização de situações adversas e do sofrimento no trabalho como inerentes ao mundo do trabalho e à experiência humana, como no estudo de Flach et al. (2009) sobre a representação do sofrimento no trabalho em um revista de negócios.
Neste sentido, o discurso midiático relativo ao mundo do trabalho, fortalecido pela
apropriação de conceitos científicos e inserido em uma lógica de dominação se inscreve
em um conjunto mais amplo de práticas de controle social, com foco na legitimação da
competividade e em estratégias de culpabilização (GUARESCHI, 2013), e de flexibilização do discurso (BERNARDO, 2009).
Resiliência no Trabalho
O conceito de resiliência é originário do estudo das propriedades mecânicas dos materiais
em física e engenharia, podendo ser conceituado como a capacidade de certos materiais
absorverem energia elástica sob tração e devolvê-la quando após a cessão da tração
(OHRING, 1995). O sentido deste conceito, com o tempo e por analogia, foi sendo
apropriado por outros campos do saber para se referir a fenômenos diversos que
mantinham alguma semelhança com o comportamento destes materiais, incluindo as
noções próprias de cada campo, como por exemplo o acréscimo da noção de adaptação no campo da biologia (SORDI; MANFRO; HAUCK, 2011).
No campo da psicologia o conceito de resiliência pode ter as raízes observadas já nas
teorias clássicas da psicanálise e da psicologia do desenvolvimento, mesmo que não
explicitamente nomeado como tal (SORDI; MANFRO; HAUCK, 2011). Paulatinamente, o
conceito de resiliência ocupou o espaço dos conceitos de invencibilidade e
invulnerabilidade, inicialmente utilizados nas pesquisas sobre o desenvolvimento da
criança, e logo em seguida do adolescente, em condições desfavoráveis buscando
identificar os traços de personalidade ou características individuais que constituiriam os
sujeitos resilientes (YUNES, 2003).
À esta tendência de identificação de componentes constituintes da resiliência, de
inspiração psicométrica, foi-se somando uma tendência de cunho mais interacionista
focada na identificação dos fatores de risco e de proteção (SOUZA; CERVENY, 2006;
YUNES, 2003; ANGST, 2009). Nesta perspectiva a resiliência é vista como “uma inter-
relação complexa entre certas características dos indivíduos e do meio ambiente que os
cerca. Resiliência consiste de um balanço entre tensão (isto é, fatores de risco) e
habilidade de lutar (isto é, fatores de proteção)” (JOB, 2003, p. 35).
Ressalta-se que os fatores de risco e de proteção podem ser tanto internos quanto
externos ao indivíduo, como por exemplo a ausência de uma rede de apoio social pode ser um fator de risco externo para um indivíduo, enquanto a sua presença é um fator protetor, raciocínio equivalente vale para os fatores internos como a autoestima. Estes fatores interagem de forma dinâmica “de modo que a condição resiliente pressupõe equilíbrio entre esses fatores” (RIBEIRO et al., 2011, p. 628).
Shaikh e Kauppi (2010) ao analisarem a “miríade de conceptualizações e interpretações”
da resiliência, observam que as várias definições de resiliência não são mutualmente
excludentes, apresentando sobreposições que podem dificultar um consenso na área,
estes autores optam pela definição unificadora proposta por Ungar (2008) que busca
abarcar o contexto integral e transcultural do fenômeno em questão: “No contexto de exposição à adversidade significativa, seja psicológica, ambiental, ou ambas, a resiliência é tanto a capacidade dos indivíduos para utilizarem a sua maneira os recursos de manutenção da saúde, incluindo a oportunidade para experimentar a sensação de bem-estar, bem como uma situação para a família, a comunidade e a cultura do indivíduo de fornecer esses recursos de saúde e experiências em formas culturalmente significativas.”
(UNGAR, 2008, p. 225, tradução nossa)
Analisando a produção científica brasileira de 2000 a 2006, Oliveira et al. (2008)
observaram um crescimento do interesse no número de pesquisas sobre o tema, mas
ainda mantendo uma diversidade conceitual considerável quanto a uma definição de resiliência:
“Em relação à conceituação do termo resiliência, grande parte dos estudos
mostrou que esse termo está relacionado à construção positiva no enfrentamento das adversidades, na capacidade de lidar de maneira positiva buscando a superação, na recuperação através do uso de recursos adaptativos, na noção de sobrevivência e na capacidade potencial para o desenvolvimento da resiliência em maior ou menor grau, fatores que podem tornar um indivíduo mais ou menos vulnerável ao risco e, além disso, na forma como alguns indivíduos conseguem ser resilientes frente às adversidades.” (OLIVEIRA et al., 2008, p. 761)
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