Quadrado
Fui
visitá-la novamente na tarde seguinte. Após os cumprimentos, ela
pegou
um guardanapo de papel e colocou-o sobre a mesinha.
-
Hoje gostaria de mostrar-lhe algo importante. Empreste-me sua
caneta
- pediu.
Entreguei-lhe
a caneta, e ela começou a desenhar algumas linhas retas.
Estava
decidido a não mais me surpreender com as coisas que ela
fizesse
ou dissesse, mas não pude deixar de admirar a firmeza de sua mão
ao
executar o desenho.
Quando
terminou, tinha criado a figura de um quadrado com duas
diagonais.
-
O que significa esse desenho para você? - perguntou, mostrando-me
sua obra.
-
É algum tipo de teste para avaliar meu perfil psicológico ou posso
responder
sem medo de estar sendo analisado? - perguntei, tentando ganhar tempo.
-
Apenas gostaria de saber o que você vê nele - tranqüilizou-me.
-
Aparentemente é um quadrado e suas duas diagonais... Acertei?
Ela
esboçou um sorriso, percebendo minha tensão em responder algo
inteligente.
-
Não existe certo nem errado. É apenas um desenho - disse.
Ela
parecia estar se divertindo com minha preocupação.
-
Quando você o vê como um quadrado e suas diagonais, que pensamentos
vêm à sua mente? - perguntou.
-
Quer realmente saber isso? - indaguei, tentando ganhar mais algum
tempo.
-
Só se você não quiser contar - respondeu, divertindo-se com minhas
evasivas.
-
Então vamos lá - declarei, decidido. - Esse desenho me faz lembrar
um
problema de geometria... Fico até angustiado imaginando se a próxima
pergunta
será sobre o valor de algum ângulo ou o cálculo da distância entre
dois
pontos... Acho que não são lembranças muito boas do tempo da escola
- concluí.
Ficamos
alguns segundos em silêncio.
-
Não precisa ficar angustiado. Vou salvá-lo dessa situação... A figura
pode ser o desenho de um envelope. Consegue vê-lo? - perguntou.
Olhei
novamente para o papel.
Como
num passe de mágica, o problema de geometria havia desaparecido
e lá estava o desenho de um envelope. Nenhuma linha havia mudado,
mas milagrosamente a figura era outra.
Não
consegui disfarçar e sorri como uma criança deslumbrada. Sempre
gostei muito de mágicas e, quando vi o envelope, foi como se tivesse
visto
um elefante saindo de uma caixa de fósforos.
-
Ah, é um envelope. Não pude percebê-lo da primeira vez, mas
agora...
-
Que tipo de pensamentos este envelope lhe traz? - perguntou, séria.
-
Envelope... envelope... - fingi estar procurando algo na memória.
-
Não faça cena. Quando você viu o envelope, algo surgiu em sua
mente.
Afinal, não é a primeira vez que você vê um envelope. Já existiam
coisas
associadas a ele na sua memória. Você só está ganhando tempo
porque
não tem certeza se quer me contar, não estou certa? Tinha sido
apanhado.
Parecia impossível tentar despistá-la.
-
Está bem, confesso. Lembrei-me de uma amiga que mora em outro
país.
Conheci-a numa viagem que fiz há cerca de quinze anos. Trocamos
muitas
cartas antes dela se casar. Sempre quando vejo um envelope lembro-me
dela... Tem certeza de que esta figura não é um teste para revelar
minhas
características psicológicas?
-
Pare de se preocupar em não se expor. Você ainda não percebeu
que
eu não preciso de nenhum teste psicológico para descobrir o que que-
ro...
Sou uma bruxa. Sei tudo a seu respeito. Inclusive coisas que você
mesmo
desconhece. Estou apenas lhe mostrando algo para facilitar seu caminho,
portanto pare de relutar e aprenda.
Eu
não conseguia distingüir quando ela estava falando sério de quan-
do
dizia algo apenas para me atiçar. Será que ela acreditava ser realmente
uma
bruxa? Ou tinha dito aquilo apenas para me provocar? Sua aparência
frágil
e sua idade avançada ocultavam uma mente brilhante, capaz de manter
o controle absoluto em qualquer situação. Ela era o tipo de pessoa que
eu
gostaria de ter ao meu lado caso entrasse em alguma encrenca.
-
Ah, uma bruxa! É a primeira vez que tenho uma bruxa como professora...
Pensando bem, acho que já tive algumas professoras bruxas; elas
adoravam
me deixar para exame no final do ano.
Fiz
uma careta, como se tivesse algo azedo na boca. - Entretanto,
não
acredito que você seja uma daquelas professoras bruxas - continuei. -
Talvez
seja mais como uma bruxa professora, não é? Espero não ficar de
recuperação
na sua matéria. Não estou mais em idade de fazer provas nas
férias.
-
Não se preocupe. Não será esse o caso - comentou.
-
Também gostaria que você contasse as coisas a meu respeito que
ainda
não sei. Economizaria um bom dinheiro de analista - argumentei.
-
Vou fazer melhor do que isso: vou mostrar-lhe como descobri-las
por
si mesmo. Melhor que dar o peixe é contar como se pesca, não é o que
diz
o ditado? Pegou novamente a folha de papel.
-
Vamos brincar um pouco mais com a nossa figura. O que mais você
consegue
ver neste desenho? - perguntou, retomando o ar professoral.
-
Não sei, deixe-me pensar...
Fiquei
olhando o desenho durante quase um minuto, mas não conseguia
me concentrar. Só via o envelope ou o problema de geometria.
O
silêncio era absoluto, e minha ansiedade crescia com o passar do
tempo.
Ela permanecia serena. Tive a impressão de que, se ficasse mais um
ano
olhando para a figura, ela esperaria pacientemente. Era como um jogo
de
xadrez. O próximo movimento era meu, e ela apenas aguardava minha
jogada.
Olhei
para ela pedindo socorro.
-
Não estou conseguindo... Preciso de ajuda - admiti, envergonhado.
-
Que tal uma ampulheta? - sugeriu. - Sabe o que é uma ampulheta,
não
é?
-
Claro que sei. É um tipo antigo de relógio feito de vidro no qual se
coloca
areia. Quando virado de cabeça para baixo, a areia escorre lenta-
mente
da parte superior para a inferior - discursei com ar de grande entendido.
Decidi
temperar um pouco mais nossa conversa. - Lembro-me de
que
tive uma quando vivi em Roma na época do Império, mas isso foi numa
de
minhas outras vidas - ironizei, querendo ver qual seria sua reação.
-
É bom saber que você se lembra de outras vidas. Será útil para
aproveitar
melhor esta - rebateu, desarmando-me.
Fiquei
sem ação.
-
Agora olhe para a figura e veja se consegue ver a ampulheta - ordenou.
Obedeci
e tornei a olhar para o desenho.
Numa
fração de segundo a mágica ocorreu novamente. O envelope
se
transformou numa ampulheta. Podia ver os dois cones de vidro formados
pelos
triângulos superior e inferior e o suporte de madeira formado pelas
linhas
laterais. Mais uma vez não consegui conter a expressão de quem vê
algo
mágico acontecer bem diante dos olhos.
Senti
que ela observava divertida meu deslumbramento.
-
Que pensamentos a ampulheta lhe traz? - perguntou no exato instante
em que algumas imagens surgiam em minha mente.
Deixei
as idéias fluírem.
-Vejo
um alquimista medieval colocando um frasco no fogo e virando
a
ampulheta para marcar o tempo. É alta madrugada. Ele está só em seu
laboratório
e sonha com o dia em que será capaz de produzir o elixir da
longa
vida e tornar-se imortal.
Fiquei
surpreso com as idéias que eu mesmo acabara de expor.
-
Parabéns, está ficando poético e soltando um pouco mais a imaginação.
Isso é muito bom. Assim nosso trabalho fica mais divertido, não
acha?
- disse, sorrindo.
Era
uma legítima professora estimulando um aluno pelo acerto.
-
Obrigado. Acho que estou começando a pegar o jeito.-Agradeci e
fiz
uma reverência, como um ator no final da peça.
-
Então vamos continuar... O que mais você consegue ver no desenho?
-
Tem outra coisa para ser vista aí? - duvidei. - Só depende de você.
O
que acha?
Depois
de ter recebido os parabéns, não pretendia, sob nenhuma
hipótese,
passar um atestado de falta de imaginação. Olhei para a desafiadora
figura e procurei uma nova abordagem.
Concentrei-me
durante algum tempo tentando achar uma solução.
De
repente, tive um estalo.
-
Ah, já sei... Estou vendo uma porteira. É, sim, é uma porteira -
concluí,
entusiasmado com minha descoberta.
Ela
apenas olhou para mim e sorriu.
-
Agora você quer saber o que a porteira me faz lembrar, não é? -
continuei.
Ela
balançou levemente a cabeça, concordando. - Estou lembrando
do
sítio do meu tio. Lá havia uma porteira igual a essa. Fui para lá algumas
vezes.
Quando chegávamos, era preciso descer do carro para abri-la. O
sítio
foi vendido há muitos anos... Tenho boas recordações daquela época.
As
lembranças chegavam velozes, e continuei divagando sem restrições.
-
Era muito agradável dormir com o barulho dos grilos e acordar com
o
canto dos galos. Também havia uma pequena cachoeira perto da casa.
Tomei
banho nela algumas vezes. A água era gelada, deliciosa... Mas foi há
muito
tempo. Não faria isso de novo. Especialmente depois de ter aprendido que
é possível contrair esquistossomose em
lagos contaminados - finalizei.
Ela
levantou uma sobrancelha quando falei sobre a esquistossomose.
-
Desta vez você começou com poesia, mas foi trazido rapidamente à
realidade
pelos seus conhecimentos médicos. Pensar em esquistossomose
quebrou
todo o encanto... Alguns conhecimentos, às vezes, nos atrapalham
-
concluiu.
-
Mas evitam que a esquistossomose nos pegue - rebati.
-
Também impedem que tomemos banhos de cachoeira, não é?
Ela
colocou o desenho de lado antes de prosseguir. - Não estou di-
zendo
que devemos nos arriscar de modo insensato, mas com um pouco de
bom
senso podemos assumir alguns riscos e tornar a vida muito mais inte-
ressante...
Ao beijar alguém, você também pode contrair uma doença. Mas
qual
é a graça de passar a vida sem beijar e ser beijado?
-
Tem razão. Como disse um poeta, “O porto é o lugar mais seguro
para
um barco, mas ele não foi feito para ficar lá; seu destino é navegar” -
declamei.
Ela
bateu palmas delicadamente.
-
Parece que retomei a inspiração poética, não é? - brinquei.
-
A palavra poeta vem do grego e significa aquele que faz. Comparar
pessoas
a barcos ou a vida a uma pintura é típico da poesia. Ela permite
estabelecer
semelhanças entre coisas diversas... também possibilita ver a
mesma
coisa por diferentes perspectivas.
Pegou
o papel e mostrou-me o desenho.
-
Brincar com esta figura é uma forma de exercitar esta capacidade.
Se
soubermos utilizá-la, poderemos perceber as maravilhas ocultas em nossa
rotina
e modificarmos nossas vidas.
Uma
nota de melancolia insinuou-se em sua voz, e ela começou a
falar
como se estivesse conversando consigo mesma. - Infelizmente este nosso dom é
pouco utilizado. Essa é a principal
causa
pela qual as pessoas atrofiam a capacidade de se maravilhar com o
mundo.
Tornam-se angustiadas e insatisfeitas. Não conseguem ver os tesouros
que estão todo o tempo bem diante de seus próprios olhos - suspirou.
De
repente, como se tivesse sido apanhada distraída durante o traba-
lho,
retomou a disposição anterior.
-
Que mais você consegue ver aqui? - disse, indicando o desenho.
-
Ainda há outras coisas nesta figura? - perguntei incrédulo.
Ela
colocou o papel de lado.
-
Tem razão, não vamos exagerar. Você já tem coisas suficientes para
pensar
por hoje. É hora de descansarmos. Amanhã é sábado, você virá me
visitar?
-
Amanhã é o meu dia de folga. Outro médico está encarregado de
visitá-la.
Entretanto, se você permitir, virei apenas para conversarmos.
Posso
chegar no início da noite. Aceita? - propus.
-
Será um prazer, mas devo avisá-lo de que o horário de visitas deste
hospital
é até as dezessete horas. Se você chegar no início da noite, não
poderá
entrar - disse, num tom maroto.
-
Vou revelar um segredinho. Tenho isso para mostrar na portaria -
sussurrei,
apontando para meu crachá. - Eles pensarão que sou médico e
me
deixarão entrar mesmo fora do horário - brinquei. - Ah, muito bom.... Só espero
não despertar ciúme em nenhuma es-
posa
ou namorada pelo fato de você estar vindo me visitar no sábado à
noite.
-
Quanto a isso, pode ficar tranqüila. Estou absolutamente solteiro e
não
tenho nenhum outro compromisso marcado.
Era
verdade. Eu tinha terminado havia pouco tempo um relaciona-
mento
de vários anos e estava tentando me manter longe dos compromissos
mais
sérios. Tinha passado minhas últimas noites de sábado comendo pizza
e
ouvindo músicas sozinho em meu apartamento.
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