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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Quadrado

Quadrado
 Resultado de imagem para quadrado
Fui visitá-la novamente na tarde seguinte. Após os cumprimentos, ela
pegou um guardanapo de papel e colocou-o sobre a mesinha.
- Hoje gostaria de mostrar-lhe algo importante. Empreste-me sua
caneta - pediu.
Entreguei-lhe a caneta, e ela começou a desenhar algumas linhas retas.
Estava decidido a não mais me surpreender com as coisas que ela
fizesse ou dissesse, mas não pude deixar de admirar a firmeza de sua mão
ao executar o desenho.
Quando terminou, tinha criado a figura de um quadrado com duas
diagonais.
- O que significa esse desenho para você? - perguntou, mostrando-me sua obra.
- É algum tipo de teste para avaliar meu perfil psicológico ou posso
responder sem medo de estar sendo analisado? - perguntei, tentando ganhar tempo.
- Apenas gostaria de saber o que você vê nele - tranqüilizou-me.
- Aparentemente é um quadrado e suas duas diagonais... Acertei?
Ela esboçou um sorriso, percebendo minha tensão em responder algo
inteligente.
- Não existe certo nem errado. É apenas um desenho - disse.
Ela parecia estar se divertindo com minha preocupação.
- Quando você o vê como um quadrado e suas diagonais, que pensamentos vêm à sua mente? - perguntou.
- Quer realmente saber isso? - indaguei, tentando ganhar mais algum
tempo.
- Só se você não quiser contar - respondeu, divertindo-se com minhas evasivas.
- Então vamos lá - declarei, decidido. - Esse desenho me faz lembrar
um problema de geometria... Fico até angustiado imaginando se a próxima
pergunta será sobre o valor de algum ângulo ou o cálculo da distância entre
dois pontos... Acho que não são lembranças muito boas do tempo da escola - concluí.
Ficamos alguns segundos em silêncio.
- Não precisa ficar angustiado. Vou salvá-lo dessa situação... A figura pode ser o desenho de um envelope. Consegue vê-lo? - perguntou.
Olhei novamente para o papel.
Como num passe de mágica, o problema de geometria havia desaparecido e lá estava o desenho de um envelope. Nenhuma linha havia mudado, mas milagrosamente a figura era outra.
Não consegui disfarçar e sorri como uma criança deslumbrada. Sempre gostei muito de mágicas e, quando vi o envelope, foi como se tivesse
visto um elefante saindo de uma caixa de fósforos.
- Ah, é um envelope. Não pude percebê-lo da primeira vez, mas
agora...
- Que tipo de pensamentos este envelope lhe traz? - perguntou, séria.
- Envelope... envelope... - fingi estar procurando algo na memória.
- Não faça cena. Quando você viu o envelope, algo surgiu em sua
mente. Afinal, não é a primeira vez que você vê um envelope. Já existiam
coisas associadas a ele na sua memória. Você só está ganhando tempo
porque não tem certeza se quer me contar, não estou certa? Tinha sido
apanhado. Parecia impossível tentar despistá-la.
- Está bem, confesso. Lembrei-me de uma amiga que mora em outro
país. Conheci-a numa viagem que fiz há cerca de quinze anos. Trocamos
muitas cartas antes dela se casar. Sempre quando vejo um envelope lembro-me dela... Tem certeza de que esta figura não é um teste para revelar
minhas características psicológicas?
- Pare de se preocupar em não se expor. Você ainda não percebeu
que eu não preciso de nenhum teste psicológico para descobrir o que que-
ro... Sou uma bruxa. Sei tudo a seu respeito. Inclusive coisas que você
mesmo desconhece. Estou apenas lhe mostrando algo para facilitar seu caminho, portanto pare de relutar e aprenda.
Eu não conseguia distingüir quando ela estava falando sério de quan-
do dizia algo apenas para me atiçar. Será que ela acreditava ser realmente
uma bruxa? Ou tinha dito aquilo apenas para me provocar? Sua aparência
frágil e sua idade avançada ocultavam uma mente brilhante, capaz de manter o controle absoluto em qualquer situação. Ela era o tipo de pessoa que
eu gostaria de ter ao meu lado caso entrasse em alguma encrenca.
- Ah, uma bruxa! É a primeira vez que tenho uma bruxa como professora... Pensando bem, acho que já tive algumas professoras bruxas; elas
adoravam me deixar para exame no final do ano.
Fiz uma careta, como se tivesse algo azedo na boca. - Entretanto,
não acredito que você seja uma daquelas professoras bruxas - continuei. -
Talvez seja mais como uma bruxa professora, não é? Espero não ficar de
recuperação na sua matéria. Não estou mais em idade de fazer provas nas
férias.
- Não se preocupe. Não será esse o caso - comentou.
- Também gostaria que você contasse as coisas a meu respeito que
ainda não sei. Economizaria um bom dinheiro de analista - argumentei.
- Vou fazer melhor do que isso: vou mostrar-lhe como descobri-las
por si mesmo. Melhor que dar o peixe é contar como se pesca, não é o que
diz o ditado? Pegou novamente a folha de papel.
- Vamos brincar um pouco mais com a nossa figura. O que mais você
consegue ver neste desenho? - perguntou, retomando o ar professoral.
- Não sei, deixe-me pensar...
Fiquei olhando o desenho durante quase um minuto, mas não conseguia me concentrar. Só via o envelope ou o problema de geometria.
O silêncio era absoluto, e minha ansiedade crescia com o passar do
tempo. Ela permanecia serena. Tive a impressão de que, se ficasse mais um
ano olhando para a figura, ela esperaria pacientemente. Era como um jogo
de xadrez. O próximo movimento era meu, e ela apenas aguardava minha
jogada.
Olhei para ela pedindo socorro.
- Não estou conseguindo... Preciso de ajuda - admiti, envergonhado.
- Que tal uma ampulheta? - sugeriu. - Sabe o que é uma ampulheta,
não é?
- Claro que sei. É um tipo antigo de relógio feito de vidro no qual se
coloca areia. Quando virado de cabeça para baixo, a areia escorre lenta-
mente da parte superior para a inferior - discursei com ar de grande entendido.
Decidi temperar um pouco mais nossa conversa. - Lembro-me de
que tive uma quando vivi em Roma na época do Império, mas isso foi numa
de minhas outras vidas - ironizei, querendo ver qual seria sua reação.
- É bom saber que você se lembra de outras vidas. Será útil para
aproveitar melhor esta - rebateu, desarmando-me.
Fiquei sem ação.
- Agora olhe para a figura e veja se consegue ver a ampulheta - ordenou.
Obedeci e tornei a olhar para o desenho.
Numa fração de segundo a mágica ocorreu novamente. O envelope
se transformou numa ampulheta. Podia ver os dois cones de vidro formados
pelos triângulos superior e inferior e o suporte de madeira formado pelas
linhas laterais. Mais uma vez não consegui conter a expressão de quem vê
algo mágico acontecer bem diante dos olhos.
Senti que ela observava divertida meu deslumbramento.
- Que pensamentos a ampulheta lhe traz? - perguntou no exato instante em que algumas imagens surgiam em minha mente.
Deixei as idéias fluírem.
-Vejo um alquimista medieval colocando um frasco no fogo e virando
a ampulheta para marcar o tempo. É alta madrugada. Ele está só em seu
laboratório e sonha com o dia em que será capaz de produzir o elixir da
longa vida e tornar-se imortal.
Fiquei surpreso com as idéias que eu mesmo acabara de expor.
- Parabéns, está ficando poético e soltando um pouco mais a imaginação. Isso é muito bom. Assim nosso trabalho fica mais divertido, não
acha? - disse, sorrindo.
Era uma legítima professora estimulando um aluno pelo acerto.
- Obrigado. Acho que estou começando a pegar o jeito.-Agradeci e
fiz uma reverência, como um ator no final da peça.
- Então vamos continuar... O que mais você consegue ver no desenho?
- Tem outra coisa para ser vista aí? - duvidei. - Só depende de você.
O que acha?
Depois de ter recebido os parabéns, não pretendia, sob nenhuma
hipótese, passar um atestado de falta de imaginação. Olhei para a desafiadora figura e procurei uma nova abordagem.
Concentrei-me durante algum tempo tentando achar uma solução.
De repente, tive um estalo.
- Ah, já sei... Estou vendo uma porteira. É, sim, é uma porteira -
concluí, entusiasmado com minha descoberta.
Ela apenas olhou para mim e sorriu.
- Agora você quer saber o que a porteira me faz lembrar, não é? -
continuei.
Ela balançou levemente a cabeça, concordando. - Estou lembrando
do sítio do meu tio. Lá havia uma porteira igual a essa. Fui para lá algumas
vezes. Quando chegávamos, era preciso descer do carro para abri-la. O
sítio foi vendido há muitos anos... Tenho boas recordações daquela época.
As lembranças chegavam velozes, e continuei divagando sem restrições.
- Era muito agradável dormir com o barulho dos grilos e acordar com
o canto dos galos. Também havia uma pequena cachoeira perto da casa.
Tomei banho nela algumas vezes. A água era gelada, deliciosa... Mas foi há
muito tempo. Não faria isso de novo. Especialmente depois de ter aprendido que
é possível contrair esquistossomose em lagos contaminados  -  finalizei.
Ela levantou uma sobrancelha quando falei sobre a esquistossomose.
- Desta vez você começou com poesia, mas foi trazido rapidamente à
realidade pelos seus conhecimentos médicos. Pensar em esquistossomose
quebrou todo o encanto... Alguns conhecimentos, às vezes, nos atrapalham
- concluiu.
- Mas evitam que a esquistossomose nos pegue - rebati.
- Também impedem que tomemos banhos de cachoeira, não é?
Ela colocou o desenho de lado antes de prosseguir. - Não estou di-
zendo que devemos nos arriscar de modo insensato, mas com um pouco de
bom senso podemos assumir alguns riscos e tornar a vida muito mais inte-
ressante... Ao beijar alguém, você também pode contrair uma doença. Mas
qual é a graça de passar a vida sem beijar e ser beijado?
- Tem razão. Como disse um poeta, “O porto é o lugar mais seguro
para um barco, mas ele não foi feito para ficar lá; seu destino é navegar” -
declamei.
Ela bateu palmas delicadamente.
- Parece que retomei a inspiração poética, não é? - brinquei.
- A palavra poeta vem do grego e significa aquele que faz. Comparar
pessoas a barcos ou a vida a uma pintura é típico da poesia. Ela permite
estabelecer semelhanças entre coisas diversas... também possibilita ver a
mesma coisa por diferentes perspectivas.
Pegou o papel e mostrou-me o desenho.
- Brincar com esta figura é uma forma de exercitar esta capacidade.
Se soubermos utilizá-la, poderemos perceber as maravilhas ocultas em nossa
rotina e modificarmos nossas vidas.
Uma nota de melancolia insinuou-se em sua voz, e ela começou a
falar como se estivesse conversando consigo mesma. - Infelizmente este nosso dom é pouco utilizado. Essa é a principal
causa pela qual as pessoas atrofiam a capacidade de se maravilhar com o
mundo. Tornam-se angustiadas e insatisfeitas. Não conseguem ver os tesouros que estão todo o tempo bem diante de seus próprios olhos - suspirou.
De repente, como se tivesse sido apanhada distraída durante o traba-
lho, retomou a disposição anterior.
- Que mais você consegue ver aqui? - disse, indicando o desenho.
- Ainda há outras coisas nesta figura? - perguntei incrédulo.
Ela colocou o papel de lado.
- Tem razão, não vamos exagerar. Você já tem coisas suficientes para
pensar por hoje. É hora de descansarmos. Amanhã é sábado, você virá me
visitar?
- Amanhã é o meu dia de folga. Outro médico está encarregado de
visitá-la. Entretanto, se você permitir, virei apenas para conversarmos.
Posso chegar no início da noite. Aceita? - propus.
- Será um prazer, mas devo avisá-lo de que o horário de visitas deste
hospital é até as dezessete horas. Se você chegar no início da noite, não
poderá entrar - disse, num tom maroto.
- Vou revelar um segredinho. Tenho isso para mostrar na portaria -
sussurrei, apontando para meu crachá. - Eles pensarão que sou médico e
me deixarão entrar mesmo fora do horário - brinquei. - Ah, muito bom.... Só espero não despertar ciúme em nenhuma es-
posa ou namorada pelo fato de você estar vindo me visitar no sábado à
noite.
- Quanto a isso, pode ficar tranqüila. Estou absolutamente solteiro e
não tenho nenhum outro compromisso marcado.
Era verdade. Eu tinha terminado havia pouco tempo um relaciona-
mento de vários anos e estava tentando me manter longe dos compromissos
mais sérios. Tinha passado minhas últimas noites de sábado comendo pizza
e ouvindo músicas sozinho em meu apartamento.

https://www.passeidireto.com/arquivo/16717046/o-livro-da-bruxa

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