SASSAKI, Romeu Kazumi. Deficiência mental ou deficiência intelectual. s.l., dez.2004.
[1] Em primeiro lugar, a questão da palavra “deficiência”. Sem dúvida alguma, a tradução correta das palavras (respectivamente, em inglês e espanhol) "disability" e “discapacidad" para o português falado e escrito no Brasil deve ser "deficiência". Esta palavra permanece no universo vocabular tanto do movimento das pessoas com deficiência como dos campos da reabilitação e da educação. Trata-se de uma realidade terminológica histórica. Ela denota uma condição da pessoa resultante de um impedimento (em inglês, “impairment”). Exemplos de impedimento: lesão no aparelho visual ou auditivo, falta de uma parte do corpo, déficit intelectual. A palavra “impairment” pode, então, ser traduzida como “impedimento”, “limitação”, “perda” ou “anormalidade” numa parte (isto é, estrutura) do corpo humano ou numa função (isto é, funções fisiológicas) do corpo, de acordo com a Classificação Internacional de Funcionalidade, Deficiência e Saúde (CIF), aprovada em 2001. As funções fisiológicas incluem funções mentais. O termo “anormalidade” é utilizado na CIF (em inglês, ICF - International Classification of Functionality, Disability, and Health), estritamente para se referir a uma variação significativa das normas estatísticas estabelecidas (isto é, como um desvio da média da população dentro de normas mensuradas) e ele deve ser utilizado somente neste sentido.
[2] A palavra “deficiência” não pode ser confundida com a palavra "incapacidade", que é uma tradução, também histórica, do termo "handicap". A palavra "incapacidade" denota um estado negativo de funcionamento da pessoa em função do ambiente humano e físico inadequado ou inacessível, e não um tipo de condição. Por exemplo, a incapacidade de uma pessoa cega para ler textos que não estejam em braile, a incapacidade de uma pessoa com baixa visão para ler textos impressos em letras miúdas, a incapacidade de uma pessoa em cadeira de rodas para subir escadarias, a incapacidade de uma pessoa com deficiência intelectual para entender explicações complexas, a incapacidade de uma pessoa surda para captar ruídos e falas. Configura-se, assim, a situação de “desvantagem” imposta às pessoas COM deficiência através daqueles fatores ambientais que não constituem barreiras para as pessoas SEM deficiência.
[3] Para atrapalhar pessoas que lutam há décadas pelo uso de terminologias corretas, a acima referida CIF, da Organização Mundial da Saúde (
www.who.int/icidh), foi oficialmente traduzida para o português como CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE FUNCIONALIDADE, INCAPACIDADE E SAÚDE (www.fsp.usp.br/~cbcd). E o pior é que no corpo dessa tradução só é utilizada a palavra “incapacidade” toda vez que, no texto original, aparece o vocábulo “
disability” (deficiência). A tradução espanhola está correta: CLASIFICACIÓN INTERNACIONAL DE FUNCIONAMIENTO, DE LA DISCAPACIDAD Y DE LA SALUD. Imaginemos o Brasil inteiro começando agora a falar e escrever: "Quantos incapacitados existem no Brasil?", "As empresas estão contratando pessoas incapacitadas", "Que tipo de incapacidade seu filho tem?".
[4] A questão do número. Em termos formais, devemos manter a palavra “deficiência” no singular. Por exemplo: pessoas com deficiência visual (e não "pessoas com deficiências visuais"). Devemos também falar e escrever "pessoas com deficiência intelectual" (e não "pessoas com deficiências intelectuais"). É importante usarmos o singular ao nos referirmos à deficiência e/ou ao tipo de deficiência, independentemente de, no idioma inglês, ser utilizado o plural ("persons with disabilities", "persons with intellectual disabilities") ou o singular ("persons with a disability", "persons with an intellectual disability"). Assim, é incorreto escrevermos, por exemplo: "Fulano tem deficiências intelectuais", "Ciclano é uma pessoa com deficiências físicas", "Beltrano é um aluno com deficiências visuais".
[5] Agora, um comentário sobre os termos “deficiência mental” e “deficiência intelectual”. A partir da década de 80, o termo utilizado tem sido "deficiência mental". Antes disso, muitos outros termos já existiram. E, atualmente, há uma tendência mundial (brasileira também) de se usar "deficiência intelectual", termo com o qual concordo por duas razões. A primeira razão tem a ver com o fenômeno propriamente dito. Ou seja, é mais apropriado o termo "intelectual" por referir-se ao funcionamento do intelecto especificamente e não ao funcionamento da mente como um todo.
[6] A segunda razão consiste em podermos melhor distinguir entre "deficiência mental" e "doença mental", dois termos que têm gerado muita confusão há décadas, principalmente na mídia. Os dois fenômenos trazem o adjetivo "mental" e muita gente pensa que "deficiência mental" e "doença mental" são a mesma coisa. Então, em boa hora, vamos separar os dois fenômenos. Também no campo da saúde mental (área psiquiátrica), está ocorrendo uma mudança terminológica importante, substituindo o termo "doença mental" por "transtorno mental". Permanece, sim, o adjetivo "mental" (o que é correto), mas o grande avanço científico foi mudar para "transtorno". Aqui também se aplica o critério do número (singular e não plural) para a palavra “transtorno”. Dizemos: "pessoa(s) com transtorno mental", e não "pessoa(s) com transtornos mentais", mesmo que existam vários transtornos mentais. Segundo especialistas, o transtorno mental pode ocorrer em 20% ou até 30% dos casos de deficiência intelectual [Marcelo Gomes, “O que é deficiência mental e o que se pode fazer?”], configurando-se aqui um exemplo de deficiência múltipla.
[7] Hoje em dia cada vez mais se está substituindo o adjetivo “mental” por “intelectual”. A Organização Pan-Americana da Saúde e a Organização Mundial da Saúde realizaram um evento (no qual o Brasil participou) em Montreal, Canadá, em outubro de 2004, evento esse que aprovou o acima referido documento DECLARAÇÃO DE MONTREAL SOBRE DEFICIÊNCIA INTELECTUAL. Observe-se que o termo “intelectual” foi utilizado também em francês e inglês: Déclaration de Montreal sur la Déficiénce Intelectuelle, Montreal Declaration on Intelectual Disability).
[8] A expressão “deficiência intelectual” foi oficialmente utilizada já em 1995, quando a Organização das Nações Unidas (juntamente com The National Institute of Child Health and Human Development, The Joseph P. Kennedy, Jr. Foundation, e The 1995 Special Olympics World Games) realizou em Nova York o simpósio chamado INTELECTUAL DISABILITY: PROGRAMS, POLICIES, AND PLANNING FOR THE FUTURE (Deficiência Intelectual: Programas, Políticas e Planejamento para o Futuro).
[9] Esta substituição ocorreu também na Espanha, conforme notícia publicada em 2002, que se segue: “Espanha - Resolução exige a substituição do termo deficiência mental por deficiência intelectual. A Confederação Espanhola para Pessoas com Deficiência Mental aprovou por unanimidade uma resolução substituindo a expressão “deficiência mental” por “deficiência intelectual”. Isto significa que agora a Confederação passa a ser chamada Confederação Espanhola para Pessoas com Deficiência Intelectual (Confederación Española de Organizaciones en favor de Personas con Discapacidad Intelectual). Esta organização aprovou também o novo Plano Estratégico de quatro anos para melhorar a qualidade de vida, o apoio institucional e os esforços de inclusão para pessoas com deficiência intelectual”. Fonte: Digital Disnnet Press Agency, Digital Solidarity, n° 535, Bogotá, 3 de setembro de 2002.
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