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segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Al- Farabi

A Educação na Idade Média. A busca da Sabedoria como caminho para a Felicidade:
Al-Farabi e Ramon Llull
Ricardo da Costa (Ufes)
In: Dimensões - Revista de História da UFES 15. Dossiê História, Educação e Cidadania.
Vitória: Ufes, Centro de Ciências Humanas e Naturais, EDUFES, 2003, p. 99-115 (ISSN 1517-2120).
Resumo: O artigo analisa o tema da educação medieval sob o prisma de seus contemporâneos. Foram selecionados dois filósofos - Al-Farabi e Ramon Llull - que em seus escritos trataram da educação como um instrumento básico do homem para se chegar ao conhecimento, e daí, à felicidade, bem supremo a ser alcançado.

Abstract: This article analyses the theme of medieval education by the view of his contemporaries. We have selected two philosophers - Al-Farabi and Ramon Llull, witch in their writings dealt with education as a human basic instrument to achieve the knowledgement, and from here to happiness, supreme good to be achieve.

Palavras-chave: Educação medieval - Sabedoria - Felicidade.

Keywords: Medieval Education - Wisdom - Happiness.

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Um grupo de discípulos estuda uma lição com seu mestre, que lê (repare nos olhos de todos: tanto os do professor quanto os dos estudantes fixam atentamente os livros abertos). Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).


Os medievais refletiram muito a respeito da Felicidade, do Bem, do Belo, da Verdade, enfim, todas as categorias supremas pelas quais a vida humana aspira. Na Idade Média, a Educação era vista como um instrumento para se alcançar a Sabedoria, que conseqüentemente, levaria o homem à Felicidade, um bem desejado por si mesmo e mais perfeito que todos os outros bens (Al-Farabi, 2002: 43-44).

Nossa proposta nesse artigo é demonstrar e compreender como os medievais pensaram a Educação: como o estudo adequado, isto é com disciplina, método e, principalmente, amor à sabedoria, levaria os jovens estudantes à Sapiência. Para isso, selecionamos dois filósofos medievais: Al-Farabi (c. 870-950) e Ramon Llull (1232-1316). Dois homens separados no tempo, por suas religiões, por suas culturas, mas unidos pela cosmovisão e pedagogia medievais. Portanto, dois intelectuais no sentido pleno e perfeito da palavra - e não no sentido gramsciano, conceito inteiramente anacrônico para o período medieval e equivocadamente desenvolvido por Jacques Le Goff em seu Intelectuais na Idade Média (De Libera, 1999).

Esses dois medievais personificam maravilhosamente um tempo que buscou a ciência como um fim nobre em si, e não visando um objetivo específico que, no fim das contas – como vimos ao longo da História – muitas vezes passou a ser mais importante que o próprio ato de conhecer. Pelo contrário, na Idade Média os estudantes eram orientados a considerar importante todo o conhecimento científico, não terem vergonha de aprender com qualquer um e não desprezarem os outros depois de terem alcançado o saber. Assim, trilharei um caminho de amor e bondade para tentar compreender as categorias mentais dos medievais a respeito da Educação.

*

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Detalhe de um sarcófago da primeira metade do século II (Paris, Louvre). Um menino declama um dever de Retórica diante de seu pai (não do mestre). Tanto os seus dois dedos da mão direita quanto sua postura corporal (inclusive a perna direita levemente inclinada para trás) compõem a eloqüência; o papiro na mão esquerda é o símbolo de sua cultura, de sua dignidade social. O estudo na Antigüidade existia para adornar o espírito e instruir o estudante nas belas letras. Em Roma não havia utilitarismo na Educação. Ver VEYNE, Paul. “O Império Romano”. In: VEYNE, Paul (org.). História da Vida Privada I. Do Império Romano ao Ano Mil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 33.

Na Antigüidade Ocidental a Educação era entendida como uma transmissão de técnicas adquiridas. O ato pedagógico tinha, sobretudo, a finalidade de possibilitar o aperfeiçoamento dessas técnicas através da iniciativa dos indivíduos (Luzuriaga, 1978: 57). A Pedagogia não tinha a dignidade de ciência autônoma, sendo considerada parte da Ética ou da Política, e, por isso, elaborada unicamente em vista do fim que estas propunham ao homem. Os expedientes ou os meios pedagógicos só eram estudados em relação à primeira educação ministrada na infância: ler, escrever e contar (Manacorda, 1989: 85).

A reflexão pedagógica era dividida em dois ramos isolados: um de natureza puramente filosófica, elaborado por conceitos éticos, e outro de natureza empírica ou prática, visando preparar a criança para a vida. O ato de educar era baseado no ser, utilizado para a formação e amadurecimento do homem e a busca de sua consecução completa ou perfeita. Ele era uma passagem gradual da potência ao ato, da infância até a fase adulta (Abbagnano, 2000: 306).

No entanto, o status da criança no mundo antigo era praticamente nulo. Sua existência dependia do poder do pai; poderia ser rejeitada se fosse menina ou se nascesse com algum problema físico. Seu destino, caso sobrevivesse, era abastecer os prostíbulos de Roma e o sistema escravista (De Cassagne). Até o final da Antigüidade, boa parte das crianças pobres eram abandonadas ou vendidas; as ricas enjeitadas - por causa de disputas de herança - eram entregues à própria sorte (Roussel, s/d: 363). Seria necessário a revolução pedagógica levada a cabo pelo cristianismo para que a criança passasse a ser valorizada como ser e recebesse uma orientação educacional direcionada e de cunho ético-integral (Costa, 2002: 17-18).

A base do currículo educacional medieval foi dada pela obra O casamento da Filologia e Mercúrio, do cartaginês Marciano Capela, escrita por volta de 410-427. Nela, o autor, influenciado pela enciclopédia de Varrão (Sobre as Nove Disciplinas), tratou das Sete Artes Liberais, damas de honra daquele casamento: 1) Gramática, 2) Retórica, 3) Dialética, 4) Aritmética, 5) Geometria, 6) Astronomia e 7) Harmonia. Marciano Capela deixou de lado a Medicina e a Arquitetura, por tratarem de coisas terrestres que “...não têm nada em comum com o céu.” (citado em Nunes, 1979: 75).

Platão já havia mostrado a distinção entre o que se chamou o Trivium (Gramática, Retórica e Dialética) e o Quadrivium (Aritmética, Geometria, Astronomia e Música). Ao que tudo indica, Boécio (480-524) foi o primeiro a chamar de Quadrivium as quatro disciplinas aqui relacionadas; o termo Trivium só foi utilizado mais tarde (Monroe, 1977: 113-114; Nunes, 1979: 78). As Artes Liberais eram denominadas artes pois implicavam não somente o conhecimento, mas também uma produção que decorria imediatamente da razão, como várias outras - por exemplo, o Discurso e a Retórica, os Números e a Aritmética), as Melodias e a Música, etc. (Le Goff, 1993: 57).

Assim, ao lado das sete Artes Liberais, desenvolveu-se durante esse primeiro tempo medieval um novo o conceito de Educação. Os pensadores de então acreditavam que as palavras (a linguagem) possuíam em si a possibilidade de resgatar a experiência humana esquecida (Lauand, 1998: 106); o próprio conceito significava literalmente a idéia: educação, educe, “fazer sair”, “extrair”. Por exemplo, na Península Ibérica usava-se o verbo nutrir: o mestre era o nutritor e o estudante o nutritus. Aqueles homens entendiam a educação como um ato saboroso para o intelecto - daí o significado etimológico de sabor para a palavra saber (BRAVO, 2000: 304).

Para os educadores de então, o conhecimento já existia inato no estudante. Restava saber de que modo o aluno seria conduzido da ignorância ao saber. Cabia ao professor acender uma centelha na criança, formá-la, não asfixiá-la (Price, 1996: 88). O estudo era utilizado principalmente para o desenvolvimento da vida do espírito, para a elevação espiritual. Hoje isto se perdeu de uma tal forma que uma das características marcantes da pedagogia moderna consiste no fato de ela ter conseguido dissociar, cada vez mais profundamente ao longo dos últimos 700 anos, o estudo da busca de Deus, de valores éticos e morais, enfim, das virtudes, causa primeira da profunda crise ética pela qual passamos nos dias de hoje.

Até o aparecimento da literatura vernácula (séculos XI e XII), os monges cristãos foram os responsáveis pela manutenção e produção de praticamente todos os textos escritos. Eles preservaram a cultura antiga. Graças a seu meticuloso trabalho realizado nos mosteiros, os monges copiaram os escritos antigos, salvando-os assim das invasões bárbaras da Alta Idade Média (Nunes, 1979: 80-83). Além disso, eles lideraram uma revolução cultural sem precedentes: inventaram nossa caligrafia (minúscula carolíngia), o livro (folio) e nossa forma de leitura (em silêncio), expandindo ao máximo a capacidade cerebral de reflexão profunda (Parkes, 1998: 103-122; Hamesse, 1998: 123-146).

Feitas essas considerações preliminares sobre o conceito de educação e a importância do período medieval para a preservação do conhecimento antigo e suas importantes contribuições para a linguagem, a divisão das artes e as novas formas de se pensar o conhecimento, passamos agora aos filósofos escolhidos para mostrar ao leitor como o saber era entendido, e de que forma o estudante poderia atingir a felicidade em suas buscas íntimas com seu objeto de estudo.

Al-Farabi

Imagem 3

No mapa, ao centro, o Usbequistão, com destaque para o rio Syr Darià (al-Farabi nasceu em suas margens, por volta de 870),

Um dos grandes do pensamento muçulmano, Al-Farabi viveu entre 870 e 950 (1). Nascido nas terras da Transoxiana (região da Ásia Central, atual Usbequistão), ali provavelmente começou sua formação intelectual com cristãos nestorianos - o nestorianismo rejeitou a expressão "mãe de Deus" (theotokos) para designar Maria, recomendando "mãe do Cristo" (Christotokos); seus adeptos fundarama igreja sírio-nestoriana (ou caldeu-nestoriana) (Fröhlich, 1987: 39).

Além de escrever comentários sobre textos aristotélicos, Al-Farabi produziu notáveis e influentes obras, a maioria delas dedicadas ao estudo das condições sociais e individuais em que o homem pode alcançar a felicidade (Ramón Guerrero, 2002: 21).

Em seu texto O caminho da Felicidade (Kitab al-tanbih 'alà sabil al-sa'ada), Al-Farabi quer ensinar ao leitor a melhor forma de se atingir a plenitude do belo: através do estudo, da reflexão. Existem, diz ele, três caminhos para a felicidade: a ação (o ato de ouvir, o de olhar, etc.), as afeições da alma (o apetite, o prazer, o gozo, a ira, o medo, o desejo, etc.) e o discernimento por meio da mente.

Para que esses caminhos sejam percorridos, é necessário que o viajante tenha plena liberdade de escolha, o que ele chama de livre-eleição (e o cristianismo chamou livre-arbítrio). Além disso, devemos buscar, saber e praticar as virtudes, faculdades que são um hábito da alma. Por esse motivo, o homem tem a mesma capacidade de fazer o feio que fazer o belo (curiosamente, há pouco tempo, questionado em uma entrevista sobre o atentado islâmico ao World Trade Center, o historiador Eric Hobsbawn afirmou o mesmo).

De qualquer modo, devemos buscar os hábitos belos. Segundo Al-Farabi são:

1) Valentia
2) Generosidade
3) Moderação
4) Perspicácia
5) Sinceridade e
6) Afabilidade (Al-Farabi, 2002: 48).

Os hábitos, para serem hábitos, devem ser praticados. Por exemplo,

A arte de escrever só se consegue quando o homem pratica de maneira usual a ação (...) A excelência da ação de escrever procede do homem somente por destreza na escrita, e a destreza para escrever só se adquire quando antes se acostuma o homem a uma excelente ação de escrever (...) Esta excelente ação de escrever é possível ao homem (..) por causa da faculdade que possui por natureza.
(Al-Farabi, 2002: 52)

Assim, caro leitor, se deseja ser hábil em uma arte, pratique-a! Se quer ser inteligente, estude, se quer escrever, escreva, e assim por diante. Em outras palavras: aprenda fazendo, conselho simples e óbvio conhecido pelos medievais, hoje abandonado por muitas pedagogias ditas modernas.

Por oposição, os hábitos morais feios são a enfermidade da alma, e o homem livre é aquele que consegue discernir o que é dado pela reflexão. O homem é uma besta quando não reflete e também não consegue decidir nada (Al-Farabi, 2002: 62). Caro leitor, não pense que estou colocando palavras em nosso autor. Veja por si mesmo:

Alguns homens têm excelente reflexão e poderosa decisão para fazer aquilo que a reflexão lhes impõe; são aqueles que podemos merecidamente chamar de homens livres. Outros carecem de ambas as coisas e são os que podemos merecidamente chamar homens bestiais e servos.

Outros carecem somente de poderosa decisão, mas têm excelente reflexão: são aqueles que podemos chamar servos por natureza. Isso acontece a alguns que se arrogam a ciência ou se consideram filósofos, e então estão em uma categoria abaixo do primeiro na servidão, e aquela ciência que se arrogam se converte em ignomínia e desonra para eles, pois o que adquirem é algo inútil, pois não obtêm proveito.

Por fim, outros carecem de excelente reflexão embora tenham poderosa decisão; para quem é assim, outros refletem por ele; ou bem se deixará levar por quem reflete por ele, ou não se deixará levar. Caso não se deixe levar, também será uma besta, mas se se deixar levar, terá êxito em muitas de suas ações e, por causa disso, poderá escapar da servidão e participar com os livres.
(Al-Farabi, 2002: 62-63 [os grifos são meus])

Essa bela passagem mostra um grande ensinamento que distingue os pensadores medievais dos atuais pedagogos: a capacidade de julgar é essencial ao sábio - e, lamentavelmente, quantas e quantas vezes ouvi de professores - e depois colegas - que um bom historiador não pode julgar, não tem esse direito...

Mais ainda: o que distingue o homem livre da besta humana é sua capacidade reflexiva! Nessa verdadeira classificação humana em quatro tipos, Al-Farabi eleva as virtudes intelectuais ao grau do excelente discernimento. Caso queiram aplicar a filosofia alfarabiana à História ensinada em nossos dias, posso resumi-la em uma frase: o bom, o verdadeiro historiador apreende o conteúdo histórico, reflete a seu respeito e por fim emite um julgamento de valor. E somente esse último momento intelectual é considerado por Al-Farabi digno e capaz de distinguir o homem livre da besta...

A finalidade desse discernimento intelectual em Al-Farabi sempre será a busca do belo, daquilo que causa prazer e fruição ao espírito. Os fins também são três, como os caminhos: o agradável, o útil e o belo, pois “...todas as artes buscam o belo ou o útil.” (Al-Farabi, 2002: 67)

Por fim, Al-Farabi afirma que as artes necessárias para se trilhar o caminho da felicidade também são três: Filosofia, Lógica e Gramática. A Filosofia se divide em Teórica (Matemática, Física e Metafísica) e Prática (Ética e Filosofia Política, ou "da cidade"). A Felicidade Suprema é alcançar a Filosofia:

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